Aline Bittencourt, pedagoga e especialista em educação inclusiva, reflete sobre os sinais sutis do autismo em meninas e mulheres e por que tantos casos ainda passam despercebidos. Com base em sua experiência e vivência pessoal, ela aponta caminhos para uma escola mais sensível à neurodivergência feminina.
Aline, quais são os principais sinais do autismo que costumam ser ignorados ou mal interpretados em meninas e mulheres?
Os principais sinais do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em meninas e mulheres costumam passar despercebidos por se manifestarem de forma mais sutil. Comportamentos como o hiperfoco — direcionado a temas socialmente aceitos, como desenhos, maquiagem ou estilos musicais — geralmente não despertam atenção clínica. Da mesma forma, a timidez extrema pode mascarar dificuldades reais de socialização, sendo interpretada apenas como traço de personalidade. Além disso, as meninas conseguem imitar comportamentos esperados socialmente. Essa capacidade de simular expressões e papéis contribui para que suas características autísticas sejam disfarçadas, dificultando o reconhecimento e o diagnóstico precoce.
Na sua opinião, o que mais contribui para o diagnóstico tardio do autismo em mulheres?
O diagnóstico tardio do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em meninas está diretamente relacionado à forma como os critérios diagnósticos foram historicamente estabelecidos. Os estudos iniciais realizados por Kanner e Asperger basearam-se na observação de grupos compostos exclusivamente por meninos, o que influenciou significativamente a construção dos instrumentos diagnósticos adotados até hoje.Existe, de fato, uma vertente que aponta para uma maior incidência de TEA em meninos. No entanto, as evidências científicas recentes revelam que muitas meninas têm sido inicialmente diagnosticadas com transtornos como ansiedade, TDAH ou depressão. Só posteriormente é que se chega ao diagnóstico de autismo — o que contribui para um reconhecimento tardio e, muitas vezes, após anos de sofrimento emocional e inadequações terapêuticas.
Como a expectativa social em torno do comportamento feminino pode camuflar os sinais do TEA?
A expectativa social em torno do comportamento feminino contribui significativamente para a camuflagem dos sinais do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mesmo com os avanços e conquistas promovidos pelos movimentos feministas, ainda enfrentamos uma forte resistência em desconstruir representações tradicionais do papel da mulher — ligadas ao ambiente doméstico, ao casamento e à maternidade. Essa visão perpetua uma desigualdade nas exigências comportamentais entre homens e mulheres.
Diante disso, espera-se que meninas demonstrem maior empatia, sigam padrões de comportamento ensinados desde a infância e manifestem interesses compatíveis com o chamado “universo feminino”. Comportamentos como o isolamento e a introspecção, por exemplo, são frequentemente vistos como naturais nas meninas, o que dificulta sua problematização em contexto clínico. Além disso, muitas são treinadas desde muito cedo para se comportarem conforme as expectativas sociais, desenvolvendo uma notável capacidade de imitar padrões neurotípicos — característica que acaba mascarando os sinais autistas e dificultando o diagnóstico precoce.
O conceito de “máscara social” tem sido muito discutido por mulheres autistas. Como isso aparece na sua prática?
Embora eu não possa falar a partir da prática clínica, por não ser meu foco de atuação, e sim sobre o que temos nos relatos científicos, que evidenciam que a máscara social atua como um fator gerador de cansaço extremo, ansiedade, fobias e quadros recorrentes de exaustão emocional desencadeando também subdiagnósticos.
Muitas mulheres são diagnosticadas apenas na fase adulta. Quais impactos isso pode trazer para a saúde mental e emocional dessas pacientes?
Quando falo sobre o diagnóstico tardio na vida adulta, falo a partir da minha própria experiência. A exaustão constante e a falta de compreensão sobre certos comportamentos que me acompanharam por toda a vida começaram, enfim, a fazer sentido quando recebi meu diagnóstico. Fui diagnosticada recentemente, e isso trouxe uma transformação significativa. Não se trata de responsabilizar o TEA por tudo, mas de entender melhor algumas limitações — como a dificuldade em falar em público, as hipersensibilidades que muitas vezes são vistas como frescura, e o desgaste causado por tentar imitar comportamentos sociais esperados. Passar a nomear essas vivências com clareza me ajudou a me compreender e a me acolher.
Há uma lacuna na formação dos profissionais de saúde quanto às manifestações do TEA em meninas e mulheres?
Embora os primeiros estudos sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) datem de 1943, com as observações de Leo Kanner, os critérios diagnósticos utilizados até hoje foram construídos predominantemente com base em grupos compostos por meninos. Por isso, ainda é urgente o desenvolvimento de parâmetros mais robustos e sensíveis às manifestações do TEA em meninas e mulheres.
Vale lembrar que nem todo comportamento divergente indica autismo. Atualmente vivemos um cenário de aumento no número de diagnósticos — reflexo do avanço na identificação dos sinais —, mas também enfrentamos casos de diagnóstico equivocado. É essencial que profissionais estejam atentos tanto aos atrasos quanto aos excessos nos marcos do desenvolvimento, pois nem todo prejuízo social ou interesse restrito configura um quadro de TEA.
Quais características do autismo feminino mais confundem os profissionais ou são atribuídas a outros transtornos?
Entre as características do autismo feminino que mais geram confusão diagnóstica está a capacidade de imitação social, conhecida como masking. Trata-se de um mecanismo em que meninas e mulheres autistas aprendem a copiar comportamentos neurotípicos para parecerem adequadas e serem aceitas socialmente — muitas vezes à custa de grande esforço emocional. Além disso, diversos traços autísticos podem ser erroneamente atribuídos a outros transtornos. O isolamento social ou a timidez excessiva, por exemplo, costumam ser interpretados como sinais de depressão ou fobia social. Já os interesses restritos podem ser confundidos com características do TDAH, e a hipersensibilidade sensorial é frequentemente vista como “frescura”, transtorno alimentar ou até como parte de um transtorno de processamento sensorial.
Como pedagoga e especialista em Atendimento Educacional Especializado, o que você acredita que ainda falta nas escolas para identificar sinais sutis de autismo em meninas?
Como pedagoga e especialista em Atendimento Educacional Especializado, acredito que ainda falta conhecimento específico nas escolas para identificar os sinais sutis de autismo em meninas. O cenário atual revela uma inclusão muitas vezes apenas simbólica: os estudantes inseridos nas salas de aula, mas os professores não estão devidamente preparados para atender suas necessidades. Sem capacitação adequada, a inclusão corre o risco de ser apenas um ideal romântico. Ainda temos um longo caminho a percorrer para garantir uma educação verdadeiramente inclusiva, que enxergue cada estudante em sua singularidade
Em sua experiência na formação de professores, quais resistências ou estigmas sobre o autismo feminino você ainda encontra com frequência?
Em minha atuação, uma das resistências mais frequentes que encontro é a visão estigmatizada de que, para uma estudante ser identificada como autista, ela precisa apresentar todas as características que associamos ao que se chama de “autismo clássico”. Frases como “ela nem parece autista” são comuns e refletem um desconhecimento sobre como o autismo pode se manifestar de forma mais sutil em meninas — especialmente em contextos sociais, emocionais e comportamentais. Esse olhar limitado perpetua diagnósticos tardios e dificulta a construção de estratégias inclusivas realmente eficazes.
Como você enxerga o papel do currículo escolar na valorização da neurodivergência, especialmente para meninas autistas?
O currículo escolar voltado para a valorização da neurodivergência deve ser pensado sob a perspectiva de uma educação para todos. Isso significa garantir que os mesmos objetivos de aprendizagem possam ser alcançados por diferentes caminhos, reconhecendo que cada estudante aprende de maneira única. Para isso, é fundamental utilizar uma metodologia que respeite os modos singulares de aprendizagem: o Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA). Essa abordagem se baseia em três princípios essenciais — múltiplas formas de representação, múltiplas formas de expressão e múltiplas formas de engajamento — permitindo que cada aluno tenha oportunidades reais de participar, compreender e se desenvolver dentro do ambiente escolar.
Você acredita que as práticas pedagógicas atuais já caminham para contemplar as singularidades das estudantes autistas?
Discutir o autismo e suas singularidades já é um avanço, pois sinaliza um caminho de sensibilização e conscientização nas escolas. No entanto, essa responsabilidade não pode recair exclusivamente sobre os professores. No contexto atual da educação brasileira, ainda existe uma grande distância entre os territórios da saúde e da educação — áreas que, na prática, atuam de forma isolada. Para que possamos respeitar verdadeiramente as singularidades dos estudantes autistas, é essencial promover essa união e adotar um modelo de educação especial dentro da escola regular. Isso requer estratégias flexíveis, personalizadas e interdisciplinares que reconheçam cada aluno como sujeito único.
Por fim, que mensagem você gostaria de deixar para meninas e mulheres autistas que ainda se sentem invisíveis ou deslocadas dentro do sistema educacional?
MENINAS E MULHERES AUTISTAS, VOCÊS NÃO ESTÃO SOZINHAS! Mesmo que muitas vezes o sistema não enxergue suas singularidades, elas existem — e são potentes. A forma como vocês pensam, sentem, criam e aprendem tem valor, mesmo que o mundo ainda não saiba reconhecer esse brilho em toda sua intensidade.
Muitas das vezes o caminho pode parecer solitário, mas se vocês fizerem o simples exercício de olhar para o lado vai ver, que todos somos diferentes e precisamos ser respeitados. Que vocês nunca precisem se esconder para serem aceitas — porque ser diferente não é um erro, é uma maneira única de existir.
Sigam buscando seus espaços, sem máscaras. Amem-se, vocês são únicas, sensíveis e podem estar em todos os lugares.
Livro Publicado
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