Letícia Mariana é autista, jornalista e coautora do Guia de Autismo. Diagnosticada aos 19 anos, ela compartilha sua trajetória com honestidade e força: do bullying na escola à criação do próprio jornal. Em uma entrevista potente, fala sobre identidade, invisibilidade, sonhos e o que é ser mulher autista no Brasil.
Letícia, como foi receber o diagnóstico de autismo ainda na infância? Você lembra como isso foi tratado na sua família e na escola?
Eu não recebi o diagnóstico na infância. Na verdade, quando eu era criança, uma psicóloga suspeitou e indicou um médico especialista em autismo para a minha mãe. Infelizmente, minha mãe não o procurou. O laudo veio aos meus 19 anos.
Na sua experiência, quais foram os maiores desafios de crescer sendo uma menina autista?
Bullying, perfeccionismo e ingenuidade. Eu sempre fui uma menina muito ingênua e sofria bullying por ser diferente. Não sabia socializar.
Você sentiu que teve que mascarar comportamentos para se adaptar às expectativas sociais?
Até hoje! Hoje as pessoas entendem melhor, mas eu mascaro. Principalmente em entrevistas de estágio.
O que mudou na sua vida ao se entender melhor como uma mulher autista?
Praticamente tudo. Entendi melhor sobre mim, me reconheci como ser humano e conheci muitas pessoas que combinam comigo. Aprendi a lidar com as minhas dificuldades e crises.
Como estudante de jornalismo, você acha que falta espaço para pessoas autistas na mídia e na produção de conteúdo?
Na mídia, não. Na produção de conteúdo sim. As grandes empresas ainda não contratam autistas. Se contratam, é uma minoria. Não vemos uma jornalista autista na Globo, Record ou Band. Se há, provavelmente não é revelado. Isso tem como mudar e está mudando aos poucos. Eu criei o meu próprio jornal (Jornal Atípico*) para trabalhar e aplico para estágios. Minha parte eu faço.
*Jornal Atípico https://jornalatipico.com.br/
O Jornal Atípico é um jornal on-line que busca dar voz aos que pouco têm espaço na imprensa. Apesar do nome, não tem apenas conteúdo sobre autismo, mas também sobre cultura, esporte, educação, poesias, eventos e uma seção para jornalistas. Pretende ampliar os horizontes e até empregar pessoas com deficiência um dia.
Quais temas sobre o autismo em mulheres você gostaria de ver mais discutidos na sociedade?
Violência contra mulheres autistas e as histórias dessas autistas enquanto mulheres. De uma forma menos infantilizada. Autistas crescem, podem trabalhar e casar se desejarem.
A escola foi um ambiente acolhedor ou desafiador para você? Teve apoio especializado?
Foi muito desafiador. Passei por dez escolas e não tive apoio especializado. O máximo de apoio que tive foi receber temas diferentes de redação, mais difíceis, estilo Enem. Não sabia escrever temas bobos e tirei notas baixas por isso, o que fez a professora perceber que o motivo era o meu hiperfoco em escrita que me fazia saber temas mais complexos.
Você sentiu que as pessoas ao seu redor (professores, colegas, familiares) entendiam o que é o autismo?
Não e ainda não entendem. É difícil, porque ou me tratam como uma criança ou me tratam como agressiva. Isso está mudando aos poucos. Os professores da faculdade são bem melhores. Alguns do Ensino médio e fundamental foram essenciais e incríveis, outros fizeram o que conseguiram. Os meus familiares têm muito a aprender.
Em algum momento você sentiu que era tratada de forma diferente por ser autista e mulher?
Óbvio. Mas isso tem mudado conforme trabalho no jornalismo.
Você é coautora do “Guia de Autismo”. Como foi participar dessa produção e o que mais te marcou nesse processo?
Eu fui uma das primeiras a mandar o capítulo. Foi incrível, pois foi uma escrita informal e pessoal. Relembrar os momentos me marcou bastante. Eu ainda não estava na UFRJ quando escrevi pra lá, reler o artigo onde expresso a minha vontade de estudar jornalismo e ver que realizei o meu sonho é lindo.
Há alguma vivência que você gostaria que outras meninas autistas soubessem que é normal ou válida?
É normal não saber se maquiar ou se vestir na moda. Se quiser aprender, você pode. É normal sentir desconforto com algumas roupas. Seja você. E, entrando num assunto mais sério, é normal ser vítima de agressores por ser autista, mas não normalize isso. Acontece, é comum, mas não deve ser normalizado.
Você sente que há diferenças entre ser um menino autista e uma menina autista em termos de cobrança e invisibilidade?
Com certeza. Um menino autista é uma eterna criança e tratado como tal por mais tempo. Eu vejo isso, pois sou casada com um rapaz do espectro. Por mais que ele banque as contas da casa sozinho por enquanto, enquanto eu estudo e fortifico a minha carreira, ele é tratado como criança e eu como a adulta que se utiliza do autismo para ser irresponsável. É complicado.
Como mulher autista, o que você considera essencial para se sentir respeitada e incluída?
Ser tratada normalmente, mas entender que penso diferente e posso agir de forma diferente.
Que mudanças você gostaria de ver na forma como a sociedade enxerga mulheres autistas?
Mais mulheres autistas em grandes cargos, grandes empresas, grandes lugares. Enxergar as mulheres autistas como mulheres incríveis, muito além de um diagnóstico.
Que conselho você daria para outras meninas e mulheres autistas que ainda estão em busca de autoconhecimento?
Tenha o lema de ser você mesma. Sempre. E não desista dos seus sonhos. Pesquise sobre você. Aceite ajuda se precisar. Nada dura para sempre, nem mesmo o sofrimento. Tudo passa. Tudo é um momento. Aprender é constante. Isso é uma dica para todos, não somente autistas, mas principalmente autistas.
Livro Publicado
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