A pedagoga e neuropsicóloga Clarice Peres fala sobre as particularidades do TDAH como comorbidade no autismo, especialmente em meninas. Com ampla experiência na educação especial, ela explica por que essas meninas muitas vezes são invisibilizadas e como apoiar seu desenvolvimento com estratégias práticas.
Clarice, como o TDAH costuma se manifestar quando está presente em meninas autistas?
É fundamental entender que cada caso é único e deve ser diagnosticado e tratado como tal. O TDA-H é um transtorno do neurodesenvolvimento que segue critérios de classificação e diagnósticos do DSM-5 (manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais) e por tanto devem cumprir estes critérios por no mínimo 6 meses contínuos na vida desta paciente. Critérios estes que estão focados na capacidade de atenção, impulsividade e controle de sua atividade – neste caso uma hiperatividade é evidente.
Estudos demonstram que 21% das crianças e adolescentes diagnosticadas TEA também são TDA-H. Ainda que o TEA signifique um deterioramento e comprometimento neurológico, intelectual, mental e/ou do comportamento – e seja nivelado na gravidade deste comprometimento e da necessidade de apoio/suporte; ambos transtornos contam com a excelência cerebral da plasticidade neural e do sistema compensatório que o cérebro demonstra, e do que em grande parte ainda segue sendo um mistério para a neurociência.
Observo que nas meninas o fator ambiental é bastante mais relevante e mascarar os sintomas para serem aceitas socialmente é bem comum.
Também o fator de que a maioria dos educadores, cuidadores e familiares responsáveis por estar mais tempo com estas meninas, sejam mulheres, afeta nestas manifestações. Importante destacar, quando o profissional que trata esta criança ou adolescente conheça bem ambos os transtornos, para poder filtrar o que se sobrepõe nestes critérios, nossas chances de êxito, no tratamento ou no processo de aprendizagem, são muito maiores.
Os sintomas visíveis são mais fáceis de reconhecer, porém o grande desafio em ambos os transtornos (TDA-H e/ou TEA) são os sintomas sutis, que se sobrepõem ou que confundem as características fundamentais de cada transtorno. No caso das meninas estes sintomas são menos evidentes porque estão mais internalizados – sentimentos de sobrecarga interna; de desorganização; de pouca motivação; as meninas se sentem mais esquecidas; são mais tímidas devido a ansiedade social; e costumam ser perfeccionistas. Já os meninos tem sintomas mais direcionados ao exterior, por esta razão, mais fáceis de evidenciar.
Podemos observar uma desatenção enorme nas atividades que requerem foco, e manter este foco por períodos de tempo médio ou prolongado em temas que não são de interesse desta criança ou adolescente.
Uma hiperatividade que pode agravar os sintomas de irritação, descontrole e agressividade quando alguma situação requer maior concentração ou exige mais do afetivo ou cognitivo desta criança ou adolescente. Desencadeando inclusive crises de raiva por exemplo.
A comunicação assertiva também falha no TDA-H, por tanto pode ser evidenciada em comportamentos inadequados na tentativa de estabelecer um vínculo com o outro.
A desregulação emocional também está presente no TDA-H, o que pode gerar um desconforto ou reações extremas de excitação ou apatia frente as atividades propostas. O cérebro TDA-H funciona bem com os extremos, com a super estimulação e com o ‘8 ou 80‘.
A desregulação dos neurotransmissores no cérebro de um TDA-H afeta de muitas formas o comportamento e aprendizagem, ou seja, a química neural joga um papel fundamental em seus cérebros; inclusive alterando completamente os filtros que são utilizados para manter esta criança e adolescente a salvos; ou serem criteriosos e cuidadosos com os riscos que correm. E parece relevante comentar que um paciente com TDA-H tem maior consciência de si mesmo e tem muitas vezes uma empatia exagerada (coloca o outro em primeiro lugar muitas vezes numa tentativa de aceitação no grupo ou compensação emocional); o que raramente acontece com uma criança ou adolescente autista; estas têm bastante dificuldade de autopercepção ou autoconsciência de si mesmos.
As comorbilidades (como síndrome de Rett; ansiedade, depressão, transtorno oposicionista desafiante, transtornos de personalidade, transtornos alimentares, transtornos de excesso na pratica de esportes – vigorexia; transtornos obsessivos compulsivos, transtornos de aprendizagem como dislexia; dispraxia, epilepsia, PTSD, Tourette Síndrome, misofonia e etc.), além do TDA-H e TEA, também jogam um rol decisivo no diagnóstico e tratamento. Costumo dizer às famílias dos meus pacientes, que tanto no TDA-H e/ou autismo, temos uma terra fértil para outros transtornos mentais surgirem; depende de muitos fatores (ambientais; alimentares; pré-disposição genética; na gestação – idade dos pais, consumo de drogas incluindo álcool ou cigarro, problemas no parto; irmãos que já sejam diagnosticados; problemas de sono; traumatismos e etc.)
Um paciente TDA-H é quem mais sofre por sua incapacidade muitas vezes em ‘encaixar‘. Não é comum que eu perceba essa sutileza emocional em um autista.
*Vou colocar abaixo em ANEXO, talvez o mais importante deste questionário: uma lista de fortalezas do TDA-H e também do TEA.
Quais os principais desafios para diferenciar os sinais do TDAH dos comportamentos característicos do TEA em meninas?
Eu diria que estes desafios transcendem o gênero. Os números mostram que muitos autistas também apresentam TDA-H e muitos pacientes TDA-H estão dentro do spectrum. Mas alguns desafios curiosos eu gostaria de destacar: o elevado fator genético, ou seja, muitos dos pais dos meus pacientes também são TDA-H e/ou estão no spectrum, porém descobrem isso durante as primeiras consultas de seus filhos.
Outro fator curioso, é uma tendência social a generalizar ambos transtornos e de maneira negativa banalizar um transtorno mental a diferença de condutas pontuais na vida deste paciente ou família.
E por fim, a influência do uso excessivo das telas que tem poluído um bom diagnóstico psiquiátrico, comparado aos maus hábitos no período crucial de crescimento e desenvolvimento desta criança. Para mim o importante é decidir qual destes transtornos estão influindo mais negativamente na vida dos meus pacientes, e partir o tratamento desde este ponto.
O que pode levar à subnotificação ou ao diagnóstico tardio de TDAH em meninas autistas?
O mais positivo de ambos os transtornos é um diagnóstico prematuro. E por tanto, um tratamento nos primeiros anos de vida desta criança. As meninas apresentam em muitos casos um comportamento mais tranquilo e social, o que leva muitas vezes a serem taxadas de timidez ou introspecção, desta forma passando desapercebidas. Mas vale ressaltar uma vez mais, que estas observações dependem muito do comprometimento que o autismo se apresenta e de qual aspecto do TDA-H temos prevalente (desatento, hiperativo ou ambos – plus desafiante).
Como um pequeno alerta, podemos notar um exagero desta menina em querer participar ou interagir com outras crianças sem saber muito bem como fazer isso. O que pode ocasionar tensão no grupo, e um hiperfoco desta menina TDA-H desencadeando uma frustração desregulada demonstrada com agressividade ou desrespeito aos outros ou as normas de uma atividade ou brincadeira. Vale sempre lembrar, que um TDA-H sutilmente sabe manipular bastante as situações a seu favor. Mas nisso, ambos transtornos são expertos – principalmente os autistas de alta funcionalidade; são grandes manipuladores.
Existe uma forma diferente de apresentação do TDAH em meninas autistas em comparação aos meninos?
Logicamente sim, por fim na atualidade a ciência e a neurociência já reconhecem estas diferenças. E na minha opinião, é muito importante trabalharmos nestes potenciais de gênero para melhorar a vida dos pacientes. Ainda que, novamente devemos ter claro quais os critérios que cada paciente apresenta, e quais são os mais relevantes para que esta criança e adolescente tenha uma vida o mais autônoma e feliz possíveis.
Na sua prática, quais comportamentos costumam ser erroneamente atribuídos à ‘falta de interesse’ ou ‘distração’, mas na verdade são sinais de TDAH ou sobrecarga sensorial?
O comportamento dos pais é crucial em ambos transtornos, inclusive se estes pais também tem um bom diagnóstico e tratamento. É bastante comum haver mais negação por parte dos pais do que das mães, tanto no tratamento de seus filhos como no seu próprio. O segundo ponto crucial são os sistemas de educação e ensino que estão bastantes defasados e mal direcionados, em relação a capacidade e potencialidade destas crianças e adolescentes autistas e com TDA-H. E terceiro ponto, poderíamos incluir a falta de valores e limites que deveriam ser trabalhados e ensinados com muito mais genuinidade e autenticidade nas relações familiares, interpessoais e intersociais de todo o núcleo familiar, social e das instituições educacionais. Certamente desta maneira estaríamos promovendo mais alternativas de interações saudáveis, do que estar mais de 8 horas diárias em frente a uma tela, obviamente incluindo telefones ‘inteligentes‘.
Como o sistema educacional pode acolher melhor meninas com TEA e TDAH, que enfrentam múltiplas barreiras invisíveis?
Para mim estas barreiras parecem bastante visíveis, porém falta compromisso social e político para as mudanças necessárias. Mas para começar necessitamos mais profissionais treinados e formados em ambos transtornos para apoiar os professores em sala de aula, no mínimo 1 auxiliar por classes de no máximo 15 alunos. Tudo fora disso é um verdadeiro caos e sobrecarrega qualquer profissional envolvido neste processo educativo, e compromete todo o desempenho desta criança e adolescente.
O uso de medicação para TDAH é comum nesses casos? Quais os cuidados ao prescrever para autistas?
O uso da medicação deve ser aplicado exclusivamente por médicos, e minha sugestão é que preferencialmente sejam pediatras, psiquiatras, neurologistas e neuropediatras especialistas em cada um, ou ambos os transtornos. Em muitos casos o uso da medição é um ‘game change‘ ou seja uma virada do jogo completa. A questão básica deve ser, qual o transtorno é mais relevante tratar neste momento, ou quais dos sintomas são prioridade no tratamento. Sempre teremos que levar em consideração que todo o tratamento do autismo de uma forma ou de outra será para toda a vida, e do TDA-H quanto mais tarde se inicia a medicação, as chances de perder as ‘janelas neuro cognitivas‘ jogam em nosso contra.
A medicação bem administrada pode contribuir enormemente para a flexibilidade neural; para ajudar o cérebro a ‘ver se tem água na piscina antes de se atirar‘; regular as emoções; diminuir o hiperfoco; ‘ver toda a floresta e não somente uma arvore‘, procrastinar menos; enfrentar os desafios mais tranquilamente, e poder manter a atenção por um período maior e mais eficazmente – todos estes grandes problemas para quem tem ambos os transtornos.
Você criou o Projeto de Intervenção Educativa (PIE-TDAH) na Espanha. Ele também é aplicável a crianças com autismo? Como?
Este projeto beneficiou a todas as crianças envolvidas. E gostaria de ressaltar a importância de apoiarmos projetos científicos no âmbito educacional que possam incrementar a potência criadora e criativa intrínseca de toda a criança e adolescente, independentemente se tem ou não TDA-H, autismo ou outros transtornos mentais psiquiátricos.
Como? Meditando. No PIE-TDAH a meditação foi proposta como uma prática diária no currículo escolar, e comprovei os benefícios no desenvolvimento cognitivo e inclusive com aumento nas notas nas regulares disciplinas curriculares. Hoje na UCLA sabemos o quanto neurologicamente a meditação beneficia o funcionamento cerebral inclusive para os transtornos psiquiátricos infanto-juvenis.
Quais estratégias psicopedagógicas você considera mais eficazes para trabalhar com meninas com TEA e TDAH em sala de aula?
Meu livro TDA-H (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) da Teoria à Prática -www.clariceperes.com – é 100% feito de estratégias psicopedagógicas para o dia-a-dia de crianças, adolescentes e suas famílias, cuidadores e profissionais envolvidos com TDA-H. E muitas destas estratégias são adaptáveis ao autismo. Uma vez mais vale destacar, também que o professor pode focar em qual dos sintomas em sala de aula são mais relevantes de serem abordados para facilitar o processo de aprendizagem de seus alunos com TDA-H e/ou autismo. E promover uma parceria entre família e profissionais da saúde envolvidos no cuidado e suporte deste aluno é crucial.
TREINAR o cérebro TDA-H e TEA é a uma das chaves mestras deste imenso portal!
Que mensagem deixaria para profissionais da educação que ainda têm dificuldades em entender e apoiar essas meninas em sua singularidade?
Coloquem os pais como parceiros tanto fora como dentro de sala de aula; não esqueçam que muitos destes pais também são TDA-H e estão no spectrum; por tanto podem e devem ser grandes aliados. Façam acontecer também no âmbito comunitário, atraindo as pessoas próximas da escola a serem agentes de apoio, transformação e inclusão a neurodiversidade. E tolerância ZERO ao bullying. E todos as outras mensagens clichês, porém não menos importantes, de apoio e admiração por todo e qualquer profissional do sistema de ensino brasileiro: o meu MUITO OBRIGADAAAAA E PARABÉNS, VOCÊS SÃO D+!!!
*ANEXO
FORTALEZAS DOS TEA | FORTALEZAS DOS TDA-H |
● Alto nível de habilidades
● Atentos/focados nos detalhes ● Hiper focados ● Retém fatos pontuais ● Super especialistas ● Metódicos – repetitivos ● Analíticos ● Inovadores ● Criativos ● Determinados ● Tenazes ● Resilientes ● Não se distraem com facilidade ● Íntegros ● Honestos ● Leais ● Comprometidos ● Desafiam opiniões ● Aceitam as diferenças ● Não julgam os outros ● Questionam as normas ● Únicos em seu processo de pensamento ● Precisos ● Meticulosos ● Conhecedores em profundidade ● Averiguadores ● Ótima memoria a longo prazo ● Muito bom em lembrar fatos que aos demais passam desapercebidos ● Para os autistas os esportes são um grande desafio, porem tenho muitas pacientes autistas e TDA-H adolescentes que gostam de esportes- principalmente as meninas, mas querem provar todos que possam…
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● Capacidade criativa
● Podem estar conectados a muitos estímulos ao mesmo tempo ● Maior tolerância ao caos ● Engenhosos e rápidos ● Ingênuos ● Diretos ● Verdadeiros ● Defensores dos fracos e oprimidos ● Cooperadores ● Não julgam os outros ● Gostam de novidades ● São ótimos em relações publicas ● Sempre dispostos a ajudar ● São bons em memória visual ● Tem sentido de humor ● Podem ter em mente muitos projetos ao mesmo tempo ● São habilidosos na escuta ● Perdoam facilmente ● Necessitam dormir menos que os outros ● Boa reação em situações de emergência ● Gostam de caminhos alternativos ● São muito prestativos ● Adoram animais de estimação ● São ousados e se arriscam ● Tem bastante energia ● Sempre prontos para uma boa aventura ● Para os TDA-H os esportes radicais estão no TOP da lista, e também querem provar todas as modalidades que possam…
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