O artigo de Márcia Victorio defende a música como uma poderosa ferramenta de inclusão escolar, capaz de integrar corpo, mente, emoções e espiritualidade no processo de aprendizagem. A autora destaca que a música acolhe as diferenças, favorece a expressão e o autoconhecimento, promovendo uma educação mais sensível, criativa e plural. Para isso, é essencial um educador comprometido com a escuta, a diversidade e a transformação.
Falar sobre inclusão nas escolas é algo muito complexo porque engloba fatores para muito além daqueles conhecidos no senso comum como acolher deficiências. Nas escolas, todos tem, ou deveriam ter, condições de participar do processo de aprendizagem nas suas mais variadas e diferentes formas de pensar e sentir, independentemente de cor, gênero, condição social, física e psicológica. Não é uma caminhada fácil, porém, devemos nos lembrar de que a educação é um direito de todos, assegurado pela nossa constituição e assim deve ser. Entender que os alunos são diferentes, porque na verdade, somos todos, sujeitos plurais, é uma necessidade do século XXI, e isso é bem complicado. Por vezes, fico a pensar de que lado estão mesmo as tais deficiências, dos alunos ou do nosso como educadores inaptos a lidar com as singularidades e complexidade do ser humano….
É fato que os alunos não aprendem as mesmas coisas, ao mesmo tempo, que podem precisar trilhar caminhos e estratégias distintas, mas, inegavelmente, todos aprendem! Cabe ao educador encontrar as melhores trilhas. Embora seja imprescindível salientar, não me deterei aqui, aos aspectos ligados às políticas educacionais do nosso país e nem à formação do educador, sabidamente, muitas vezes, precária. Esperançosamente, desejo ressaltar um dos componentes curriculares que no meu entender, muito pode facilitar essa caminhada, pelos aspectos globais (para não dizer holísticos[1])e sistêmicos que encerra em si: a Música.
Aliás, gostaria de, a título de premissa, destacar que, assim como Ken Wilber, filósofo contemporâneo, cuja obra concentra-se basicamente na integração da ciência, da arte, da filosofia e da espiritualidade, em prol do desenvolvimento do indivíduo, entendo a educação como um saber que se manifesta nos quatro quadrantes/esferas/corpus de conhecimento, a saber: físico, emocional, mental e espiritual.
A música é uma atividade criativa e integradora que acolhe a todos por ser uma das formas de expressão das mais antigas do ser humano. Ela própria, portanto, se projeta como mediadora do mundo!
Através da música, podemos dizer ao mundo como nos sentimos, entendemos e construímos nossa compreensão do universo que nos cerca. Ela é, sem dúvida alguma, um instrumento de comunicação e expressão, base de todo processo educativo e comum a todos os indivíduos. Asseguramos, portanto, que a música é uma atividade inclusiva, pois abraça a todos, não sendo um privilégio de apenas alguns. Ousamos dizer que a música é um dos componentes pedagógicos dos mais democráticos. Cabe, entretanto, ao educador traçar estratégias diferenciadas para suas aulas, avaliando os resultados continuamente e redefinido os caminhos. Ou seja, trabalhar com a criatividade, diversificação de metodologias e atividades, flexibilidade do tempo, bem como do seu próprio processo educacional, pois ele deve ser contínuo e progressivo, é fator de autorresponsabilidade e compromisso com a educação. Porém, afirmo que há muito que se estudar a respeito das diferentes e múltiplas formas de aprender!
Por exemplo, um educador, ao entender seu aluno sob a perspectiva de desenvolvimento global, estará muito mais apto a proporcionar ações pedagógicas que conduzam ao aprendizado de que necessita para utilizar diversas linguagens e, singularmente, a música.
Considerando o corpo físico e ponderando que nosso organismo é pleno de sons porque somos feitos de frequências vibratórias[2], podemos dizer que os sons não são ensinados porque se “redescobre” os sons que existem em cada corpo/ser nas relações que ele estabelece com outros corpos/seres. É por isso que nosso corpo físico precisa ser considerado, muito mais do que um recurso, e sim, como uma potência expressiva na sua diversidade de nuances e sonoridades, pois, nele e a partir dele, os sons serão organizados e se transformarão em músicas. A atitude sinestésica presente nesse corpus conclama para o movimento, no qual a experimentação dos sons do próprio corpo constitui-se em conteúdo dos mais intensos e basilares. Apreender os próprios sons por meio das sensações e movê-los para fora de si através do movimento e em direção ao outro, proporciona ao aluno a aprendizagem do fazer. Reconhecer o seu próprio corpo físico sonoro nas suas possibilidades, assim como o corpo físico do outro e das coisas, compõe o que chamamos de dimensão corpórea ou concreta, onde o mundo é apreendido prioritariamente, pelos sentidos. A principal condição para isso é não negar o corpo do aluno, da forma como ele se apresenta e funciona, lembrando que é fonte genuína de material sonoro.
Sugerimos pensar as emoções a partir das teorias evolucionistas e neurológicas, evidenciando que as emoções são inatas, porém o modo de expressá-las está relacionado ao meio em que estamos inseridos. Além disso, essas emoções, por também ocorrerem em níveis neurológicos e de igual modo influenciam outros processos, como é o caso da memória e da aprendizagem. Sendo assim, podemos afirmar que emoção, afetividade e aprendizagem, processam-se em sinapses neuronais provocando plasticidades que transformam informações em conhecimentos. Por isso, é importante que assim como nós, os aprendizes saibam lidar com os sentimentos, identificando-os e administrando-os em acordo com o meio em que vivemos.
A música é um intenso canal de expressão das emoções, principalmente pelo corpo que sente e expressa adequadamente porque a mente entendeu e organizou. Em uma aula em que o aluno experimenta e organiza sons, do mesmo modo, internamente, ele experimenta emoções e as organiza, buscando sua paz e seu equilíbrio. Proporcionar a todos os alunos a expressão das suas emoções por meio do seu corpo e este, em relação com outros corpos, é atividade extremamente educativa, pois propicia ao aprendiz expressar-se adequadamente, ensinando-o a viver junto. O canto em conjunto, por exemplo, estará apresentando uma forma de expressão musical adequada e bela, bem como de convívio harmonioso entre os cantantes.
Assim como o corpo físico percebe através dos sentidos e o corpo emocional sente e organiza suas emoções, o corpo mental processa as informações advindas dos sentidos e das emoções por meio das inúmeras conexões neuronais e produz significados. É, portanto, um processo de conhecimento que envolve atenção, percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem. Em termos de Música abarca pensamentos e ações como: ouvir, discriminar as estruturas sonoras, conhecer as diversas músicas do seu entorno e do mundo lá de fora, interpretar, cantar, tocar instrumentos tradicionais, construir instrumentos alternativos, dançar do seu jeito e em conjunto, compor, criar e improvisar suas próprias músicas e dos seus colegas, com alegria, prazer e respeito pela riqueza da diversidade.
Ressaltamos ainda, que durante muito tempo acreditou-se que só o hemisfério esquerdo do cérebro era responsável pela fala e somente o direito pela música. Entretanto, hoje existem pesquisas que comprovam todo o nosso cérebro ser musical, ou seja, a música mobiliza uma grande porção das funções cerebrais. O educador deve incentivar seus alunos a serem perceptivos aos sons que experimentam, a pensar sobre eles, a compreender seus sentidos e a dominar seus significados, para que possam manifestar crítica e criativamente suas músicas.
Com a descoberta do mundo quântico no início do século passado, o ser humano começou a ser entendido como ser multidimensional. Na verdade, Pitágoras, já dizia intuitivamente que as estrelas cantavam e que havia uma música nas esferas que só podemos ouvir quando a nossa consciência se amplia e estende suas vibrações para além dos sentidos. Porém, foi Francesc Torralba, filósofo espanhol contemporâneo, quem se referiu a uma inteligência espiritual que transcendente ao mundo físico, nos conecta ao cosmo e nos permite sentir a presença de um Ser Superior de forma consciente e esta presença nos faz reverenciar a própria humanidade elucidando uma questão de sabedoria, lucidez, sanidade mental, ética e responsabilidade compartilhada, que prescinde de uma atitude consciente e analítica perante a vida e deve ser vista como uma prática inteligente condizente com uma postura responsável diante da vida. A música, por ser resultado da organização de sons que existem dentro de nós mesmos em relação com outros seres, continentes, planetas e sistemas prescinde da atitude analítica. Os sons ouvidos intuitivamente em um prelúdio, sinfonia, canção ou outra forma musical, necessitam ser analisados para que tenham sentido e significado. Perceber a noção de multidimensionalidade e interconexão do Ser é condição fundamental para quem busca ensinar seu aluno a aprender a ser na sua inteireza, não como um ser isolado, mas como participante de uma linda existência.
Pelo que se pode perceber, muito mais do que trazer a música para dentro das escolas como um instrumento de inclusão, torna-se imperioso pensar em um educador que compreenda a educação para além do corpo físico, reconheça nele as suas dimensões sensoriais, emocionais e espirituais e, nelas, a presença da música como constituidora e reveladora de um ser humano pleno de possibilidades, em todos os níveis da educação. Permitir a livre experiência sonora, o jogo e a ludicidade, tendo o corpo como referência para todas as relações que se estabelecerão a partir do contato com os elementos musicais, é atitude necessária dentro de um contexto escolar que pretenda uma educação sensível e plena de todos os seus aprendizes.
Enfim, finalizo afirmando quão desafiador é para todos nós nos despirmos de preconceitos e enxergarmos as diferenças reais que existem, muito além de um discurso inclusivista acadêmico, e nos compromissarmos verdadeiramente em possibilitar uma vida plena e feliz para cada aprendiz nesta vida, em nossas escolas, em nossa turma, com as necessidades específicas atendidas com responsabilidade, afeto e música!
Afinal, a música é dom da Vida!
[1]Relativo à holismo; que busca um entendimento integral dos fenômenos.
[2] VICTORIO, Marcia. Impressões Sonoras, música em arteterapia. Rio de Janeiro: WAK, 2008.
Livros Publicados
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