Por que o autismo é subdiagnosticado em mulheres?

O subdiagnóstico do autismo feminino é um problema recorrente, com impactos profundos na vida de muitas mulheres. Fatores históricos, sociais e científicos contribuíram para uma compreensão limitada do TEA nas mulheres. Neste post, discutimos como o viés de gênero e o desconhecimento das manifestações femininas dificultam o reconhecimento e o apoio adequados.

Ao longo de décadas, o transtorno do espectro autista (TEA) foi majoritariamente associado ao sexo masculino. Os primeiros estudos, como os de Leo Kanner e Hans Asperger, se concentraram em meninos com características consideradas “clássicas” do espectro. Essa abordagem influenciou profundamente os critérios diagnósticos e a formação de profissionais da saúde, deixando de fora um grande número de meninas e mulheres que também estão no espectro, mas que apresentam características diferentes.

O subdiagnóstico do autismo feminino não é apenas uma falha técnica — ele é um reflexo de um olhar enviesado sobre gênero, comportamento e saúde mental. Quando o autismo em mulheres passa despercebido, perde-se a chance de um apoio precoce, o que pode levar a anos de sofrimento psicológico, sobrecarga emocional e dificuldades sociais.

1. Raízes históricas do apagamento feminino no autismo

O autismo foi descrito pela primeira vez em 1943 por Leo Kanner, e pouco depois, Hans Asperger apresentou suas observações sobre um grupo de crianças com comportamentos semelhantes. Ambos os trabalhos focaram exclusivamente em meninos. Asperger, inclusive, chegou a sugerir que meninas raramente seriam afetadas pelo transtorno.

Essa visão, já ultrapassada, influenciou profundamente o desenvolvimento dos critérios diagnósticos adotados por manuais como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças), reforçando a ideia de que o autismo tem “características masculinas”.

2. O viés de gênero nos critérios diagnósticos

Os critérios atuais para o diagnóstico de autismo ainda estão enraizados em estudos e observações baseados em meninos. Isso significa que meninas que não se encaixam nesse perfil acabam sendo ignoradas ou diagnosticadas incorretamente com outras condições, como:

  • Transtorno de ansiedade;

  • Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC);

  • Transtorno de personalidade borderline;

  • TDAH;

  • Depressão.

Esses diagnósticos, embora por vezes corretos como comorbidades, não abordam a origem real dos comportamentos e da sobrecarga emocional.

3. Estereótipos de gênero e expectativas sociais

Na sociedade, espera-se que meninas e mulheres sejam mais sociáveis, cuidadosas e comunicativas. Quando uma menina apresenta comportamentos mais introspectivos, sensibilidade sensorial ou interesses restritos, esses sinais muitas vezes são interpretados como:

  • Timidez;

  • Sensibilidade excessiva;

  • Perfeccionismo;

  • “Frescura”.

O resultado é que essas meninas se esforçam para se encaixar, desenvolvem o masking (camuflagem social) e passam a vida tentando corresponder a um modelo que não reflete quem realmente são.

4. A influência do masking no subdiagnóstico

O masking — muito mais comum em mulheres — consiste em copiar comportamentos sociais neurotípicos para parecer “normal”. Isso envolve:

  • Ensaiar expressões faciais;

  • Observar e imitar padrões de fala e entonação;

  • Suprimir estereotipias (movimentos repetitivos);

  • Evitar mostrar confusão ou sobrecarga em ambientes sociais.

Essa camuflagem é tão eficaz que até profissionais experientes podem não identificar o TEA, a menos que façam uma investigação aprofundada sobre o histórico da pessoa e seu esforço diário para manter o “personagem”.

5. Diagnóstico tardio: quando a vida cobra a conta

Por não receberem diagnóstico e apoio na infância, muitas mulheres só são identificadas como autistas na vida adulta, geralmente após episódios de esgotamento, crises de ansiedade ou depressão profunda.

O diagnóstico tardio pode trazer alívio — uma explicação para anos de sofrimento —, mas também gera um luto: o das oportunidades perdidas, das relações fracassadas por falta de compreensão e de uma vida vivida com autocrítica intensa.

6. Dados e estudos mais recentes sobre o subdiagnóstico

Estudos atuais apontam que a proporção entre homens e mulheres no espectro é superestimada. A meta-análise de Loomes et al. (2017), por exemplo, mostrou que a proporção real pode ser de 2:1 (homens para mulheres), e não 4:1 como se pensava por décadas【1】.

Outros trabalhos, como os de Gina Rippon e Meng-Chuan Lai, apontam que as diferenças entre cérebros de homens e mulheres são muito menores do que os estereótipos indicam, reforçando a necessidade de revisar os critérios diagnósticos à luz de evidências mais inclusivas e atualizadas【2】【3】.

7. Caminhos para melhorar o diagnóstico em mulheres

Para reduzir o subdiagnóstico do autismo feminino, é fundamental:

  • Atualizar os critérios diagnósticos com base nas manifestações femininas;

  • Incluir perguntas específicas sobre masking e esgotamento social;

  • Ouvir ativamente o relato das pacientes, mesmo que suas dificuldades pareçam “sutis”;

  • Incluir mulheres nos estudos clínicos sobre TEA;

  • Oferecer formação continuada para psicólogos, médicos e educadores sobre o autismo em mulheres.

Além disso, é essencial criar espaços de escuta e validação para meninas e mulheres que não se sentem “encaixadas”, promovendo o autoconhecimento e a identificação precoce de traços do espectro.

Conclusão

O subdiagnóstico do autismo feminino é um reflexo de uma sociedade que ainda enxerga o mundo pela lente masculina. Ao compreender as manifestações específicas do autismo em mulheres, rompemos o ciclo de invisibilidade e permitimos que mais pessoas recebam o cuidado, o acolhimento e o reconhecimento que merecem. Promover a equidade no diagnóstico é um passo fundamental para a inclusão de todas as formas de ser e existir no mundo.

Referências bibliográficas

  1. Loomes, R., Hull, L., & Mandy, W. P. (2017). What is the male-to-female ratio in autism spectrum disorder? A systematic review and meta-analysis. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 56(6), 466–474.

    https://doi.org/10.1016/j.jaac.2017.03.013

  2. Rippon, G. (2019). The Gendered Brain: The New Neuroscience that Shatters the Myth of the Female Brain. Bodley Head.

  3. Lai, M. C., Lombardo, M. V., & Baron-Cohen, S. (2014). Autism. Lancet, 383(9920), 896–910.

  4. Attwood, T. (2007). The Complete Guide to Asperger’s Syndrome. Jessica Kingsley Publishers.

  5. Organização Mundial da Saúde (2022). CID-11 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

    https://icd.who.int

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