Autismo leve ou invisível? Por que o termo “leve” pode ser perigoso

O termo “autismo leve”, embora comum, pode ser enganoso e prejudicial — especialmente quando aplicado a mulheres. Neste post, vamos entender por que esse rótulo não reflete os desafios enfrentados por quem está no espectro com TEA nível 1, e como ele contribui para a negligência, o subdiagnóstico e a falta de apoio adequado.

Nos últimos anos, o número de diagnósticos de autismo em adultos — especialmente mulheres — tem aumentado. Na maioria dos casos, essas pessoas recebem o rótulo de “autismo leve” ou “funcional”, muitas vezes acompanhado da suposição de que “não precisam de tanto suporte assim”. Mas será que esse termo realmente representa a realidade dessas mulheres?

O conceito de autismo leve em mulheres esconde uma série de desafios profundos e silenciosos. Quando o sofrimento é mascarado por boas habilidades verbais, autocontrole ou desempenho acadêmico, a dor interna e o esforço para se adaptar são frequentemente ignorados. E isso pode ser perigoso — tanto no nível da saúde mental quanto no direito ao acolhimento e às adaptações.

1. O que é o autismo “leve” ou TEA nível 1?

A Classificação Internacional de Doenças (CID-11) e o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) deixaram de usar os antigos termos como “síndrome de Asperger” ou “autismo de alto funcionamento”. Atualmente, o diagnóstico de autismo é feito por níveis de suporte:

  • Nível 1: requer apoio;

  • Nível 2: requer apoio substancial;

  • Nível 3: requer apoio muito substancial.

Pessoas diagnosticadas com TEA nível 1 costumam apresentar linguagem fluente, inteligência dentro ou acima da média, e maior capacidade de camuflagem social. Daí vem a ideia de que têm um “autismo leve” — o que é uma simplificação enganosa.

2. O problema do rótulo “leve”

Chamar uma mulher autista de “caso leve” pode parecer um elogio, mas geralmente é um silenciamento de suas dificuldades reais. Isso acontece porque:

  • Minimiza o esforço necessário para parecer “normal”;

  • Ignora a sobrecarga sensorial, emocional e social que não é visível;

  • Impede que a pessoa receba as adaptações e o suporte de que realmente precisa;

  • Reforça o estigma de que autistas só “merecem atenção” quando apresentam dificuldades evidentes.

Além disso, o termo “leve” desconsidera contextos em que a pessoa pode ter sérias dificuldades — como ambientes ruidosos, mudanças de rotina, pressão social ou esgotamento.

3. Mulheres autistas e o mito da funcionalidade

Mulheres com autismo nível 1 geralmente desenvolvem estratégias de camuflagem desde cedo. Podem:

  • Copiar comportamentos sociais;

  • Forçar interações que não são naturais;

  • Esconder estereotipias (stimming);

  • Reprimir sobrecarga sensorial até o limite;

  • Ser vistas como tímidas, perfeccionistas, controladoras ou “boazinhas”.

Essa falsa funcionalidade invisibiliza o sofrimento e reforça diagnósticos errados, como ansiedade generalizada, depressão ou transtorno de personalidade. Muitas mulheres passam a vida ouvindo que são “dramáticas”, “difíceis”, “sensíveis demais” — quando na verdade estão lutando para sobreviver em um mundo que não as compreende.

4. Os riscos do autismo invisível

Quando o diagnóstico é tardio e a camuflagem é intensa, a consequência costuma ser o burnout autista: um estado de esgotamento extremo físico, emocional e mental, causado por anos de esforço para parecer neurotípica.

Esse quadro pode incluir:

  • Apatia, ansiedade e depressão;

  • Isolamento social;

  • Incapacidade de realizar atividades cotidianas;

  • Crises emocionais intensas;

  • Ideação suicida.

Segundo estudos recentes, mulheres autistas têm um risco significativamente maior de suicídio do que a população neurotípica【1】. Isso mostra o quanto o rótulo de “leve” pode ser perigoso quando serve para invalidar o sofrimento de alguém.

5. Autismo leve ≠ menos impacto

É importante entender que o nível de suporte não mede a intensidade do sofrimento. Alguém com TEA nível 1 pode ter altíssimo sofrimento subjetivo, mesmo que mantenha uma aparência de “vida normal”.

Os impactos podem ser profundos em áreas como:

  • Relacionamentos afetivos;

  • Vida profissional (sobrecarga, demissões frequentes, esgotamento);

  • Ansiedade social e fobias;

  • Problemas com organização, rotina, sono e alimentação;

  • Crises internas que passam despercebidas por todos ao redor.

6. O que pode ser feito?

Para romper com a ideia de “autismo leve” como sinônimo de “não precisa de ajuda”, precisamos:

  • Validar as experiências subjetivas, mesmo que não sejam visíveis;

  • Substituir o rótulo “leve” por descrições mais específicas (ex: TEA nível 1 com dificuldades de regulação emocional);

  • Promover diagnósticos sensíveis ao perfil feminino;

  • Criar ambientes onde seja possível ser autista sem precisar “atuar”;

  • Garantir acesso a terapias, adaptações e grupos de apoio, mesmo nos casos que parecem “funcionais”.

Conclusão

Rotular mulheres com autismo leve pode parecer inofensivo, mas frequentemente significa desconsiderar o esforço diário que elas fazem para existir num mundo que não as acolhe. É hora de abandonar os rótulos superficiais e enxergar a complexidade da experiência autista — especialmente quando ela é invisível aos olhos, mas gritante dentro da mente e do corpo. Apoiar mulheres com TEA é ouvir, validar e adaptar, sem minimizar suas dores.

Referências bibliográficas

  1. Cassidy, S., Bradley, L., Robinson, J., Allison, C., McHugh, M., & Baron-Cohen, S. (2018). Suicidal ideation and suicide plans or attempts in adults with Asperger’s syndrome attending a specialist diagnostic clinic: A clinical cohort study. The Lancet Psychiatry, 1(2), 142–147.

  2. Hull, L., Petrides, K. V., & Mandy, W. (2020). The Female Autism Phenotype and Camouflaging: a Narrative Review. Review Journal of Autism and Developmental Disorders, 7, 306–317.

  3. Lai, M. C., Lombardo, M. V., & Baron-Cohen, S. (2014). Autism. The Lancet, 383(9920), 896–910.

  4. Attwood, T. (2007). The Complete Guide to Asperger’s Syndrome. Jessica Kingsley Publishers.

  5. Organização Mundial da Saúde (2022). CID-11 – Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

    https://icd.who.int

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