Apesar do crescente reconhecimento do autismo, adultos autistas ainda são pouco visíveis nas estatísticas, campanhas e políticas públicas brasileiras. Este post aborda o apagamento histórico dessa população, a ausência de dados e serviços, e aponta caminhos para uma sociedade mais inclusiva e informada.
Quando falamos sobre autismo no Brasil, quase sempre a imagem evocada é a de uma criança. Campanhas, políticas e serviços públicos são majoritariamente voltados para a infância, deixando de lado uma parte significativa da população: os adultos autistas.
No entanto, autistas crescem — e continuam autistas ao longo da vida. A falta de dados, reconhecimento e políticas específicas para essa faixa etária reforça a invisibilidade e aprofunda desigualdades. Neste post, analisamos o que as estatísticas mostram (ou ocultam), como o discurso público ainda infantiliza o TEA e por que é urgente incluir adultos autistas nas políticas de saúde, trabalho, educação e cidadania.
1. O que os dados dizem (ou não dizem) sobre autistas adultos
No Brasil, não há um censo específico sobre pessoas autistas, e os dados disponíveis são limitados, defasados ou voltados à infância. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1 em cada 100 pessoas está no espectro autista. Aplicando essa proporção à população brasileira, teríamos mais de 2 milhões de pessoas autistas — sendo grande parte adultos.
Porém, não sabemos:
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Quantos adultos receberam diagnóstico tardio;
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Quantos vivem com apoio, de forma independente ou em situação de vulnerabilidade;
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Quantos estão empregados, estudando ou em tratamento;
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Quantos têm acesso a laudos, benefícios ou acompanhamento psicológico.
Essa falta de dados dificulta a elaboração de políticas públicas e a destinação de recursos. O apagamento estatístico é, também, um apagamento social.
2. Invisibilidade nas campanhas, pesquisas e serviços
Campanhas nacionais como o Abril Azul são importantes para conscientização, mas raramente abordam a realidade dos adultos autistas. A ênfase está sempre na criança com TEA, nos primeiros sinais, no papel dos pais e nas intervenções precoces — o que é crucial, mas não pode ser a única narrativa.
Principais lacunas:
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Pesquisas acadêmicas ainda concentram-se na infância;
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Protocolos diagnósticos muitas vezes não são validados para adultos;
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Serviços de saúde têm dificuldade em acolher demandas específicas dessa população;
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Profissionais de saúde mental ainda têm pouco preparo para lidar com autismo em adultos, especialmente em mulheres e pessoas com nível 1 suporte.
A ausência de espaços, linguagem e escuta voltados para o adulto autista reforça a ideia de que não existem ou que não precisam de apoio.
3. Diferenças entre autismo infantil e adulto na percepção pública
A maior parte da sociedade ainda associa o autismo a:
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Silêncio absoluto ou mutismo;
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Incapacidade intelectual severa;
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Estereótipos visuais e comportamentais específicos (ex: balançar as mãos, evitar contato visual).
Essas imagens não refletem a pluralidade do espectro, principalmente entre adultos que camuflaram seus traços ao longo da vida para se adaptar ao ambiente social.
Assim, muitos adultos autistas:
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Não se reconhecem como autistas por anos;
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São desacreditados quando compartilham o diagnóstico;
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Recebem diagnósticos errados (ansiedade, TDAH, depressão, borderline);
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Vivem com esgotamento crônico por tentarem “funcionar normalmente”.
Reconhecer que o autismo também é uma condição adulta é essencial para mudar a percepção pública e promover políticas efetivas.
4. A ausência de políticas específicas para essa faixa etária
A Lei 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, não delimita faixa etária — ou seja, adultos também estão protegidos por ela. Porém, na prática, a maioria das políticas e serviços são focados em crianças.
Consequências dessa ausência:
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Falta de acompanhamento no processo de transição para a vida adulta;
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Dificuldade de inserção no mercado de trabalho ou permanência em cargos formais;
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Inexistência de centros de apoio à vida independente;
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Poucas iniciativas de educação continuada ou inclusão universitária;
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Exclusão dos autistas adultos das pautas de inclusão e diversidade em políticas públicas.
É urgente que o Estado brasileiro crie políticas específicas para autistas adultos — respeitando suas necessidades singulares e heterogêneas.
5. Caminhos para construir uma sociedade mais inclusiva
Para mudar essa realidade, é necessário ir além da conscientização: é preciso atuar com políticas, escuta ativa e representatividade. Alguns caminhos possíveis:
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Incluir autistas adultos na construção de políticas públicas, ouvindo suas demandas diretamente;
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Formar profissionais de saúde mental e educação com foco em TEA adulto;
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Criar centros de atendimento específicos para adultos autistas, com suporte multidisciplinar;
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Garantir a aplicação real dos direitos já previstos em lei, como acesso a laudos, isenção de IR, cotas e adaptações no trabalho;
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Investir em campanhas de conscientização que abordem todas as fases da vida autista, não apenas a infância.
Além disso, é essencial promover o autismo adulto como parte da diversidade humana, não como problema a ser corrigido — e sim como realidade que merece visibilidade, respeito e equidade.
Conclusão
Ser um autista adulto no Brasil é, muitas vezes, ser invisível. Invisível nas estatísticas, nos serviços, nas campanhas e até na linguagem pública. No entanto, essa invisibilidade não é inevitável — ela é resultado de escolhas sociais e políticas que podem (e devem) ser transformadas.
Para isso, é preciso escutar os autistas adultos, garantir seus direitos e construir um país que compreenda o autismo como uma condição para a vida toda. Sem isso, a inclusão seguirá incompleta.
Referências bibliográficas
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Brasil. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
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Organização Mundial da Saúde (OMS). “Autism spectrum disorders.”
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Rede Athenas – Saúde Mental e Autismo. https://redeathenas.com.br
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Revista Autismo. https://www.revistaautismo.com.br
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Projeto A Fala Autista. https://afalaautista.com.br
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Milton, D. “The ‘Double Empathy Problem’”. Disability & Society, 2012.
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Kapp, S. K. (org.). Autistic Community and the Neurodiversity Movement. Springer, 2020.
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Hull, L. et al. “Camouflaging and mental health in autistic adults”. Journal of Autism and Developmental Disorders, 2019.