A inclusão escolar não pode ser pensada apenas para os alunos. Professores com deficiência, condições de saúde mental ou particularidades sensoriais também enfrentam barreiras invisíveis no sistema educacional. Emilio Figueira alerta: a verdadeira inclusão começa quando todos — inclusive quem ensina — têm espaço, voz e respeito.
Nas discussões sobre inclusão na educação, é comum encontrarmos o professor como figura central: ele é o mediador, o facilitador, o agente que torna possível o acesso ao conhecimento para todos os alunos, inclusive — ou principalmente — para aqueles que rompem com os padrões de normalidade estabelecidos. Mas raramente nos perguntamos: quem inclui o professor?
Aproveitemos o Dia Nacional do Profissional da Educação, que acontece 06 de agosto para falarmos sobre uma espécie de cegueira institucional que apaga a diversidade entre os próprios docentes. Como se todos os professores fossem iguais — física, emocional, neurologicamente — e como se estivessem sempre prontos para acolher, mesmo quando eles próprios precisam ser acolhidos. Nessa lógica, o professor com deficiência, com transtornos psíquicos, com particularidades sensoriais ou com vivências dissidentes, torna-se um não-dito. Um corpo estranho que deve se adaptar em silêncio ao sistema.
É curioso — e ao mesmo tempo trágico — que o mesmo discurso que prega a inclusão para os alunos não contemple os profissionais que compartilham dessas mesmas condições. Professores cadeirantes enfrentam barreiras arquitetônicas dentro das escolas. Professores surdos são desencorajados a assumir turmas. Professores neurodivergentes são infantilizados ou tratados como inaptos. E professores com transtornos mentais muitas vezes ocultam seus diagnósticos com medo do estigma. É a pedagogia do silenciamento: quem ensina não pode adoecer, não pode falhar, não pode ser vulnerável.
Essa exclusão silenciosa se manifesta em múltiplos níveis. Na formação inicial, por exemplo, não há diretrizes inclusivas para os próprios docentes. Licenciaturas continuam sendo pensadas para um perfil idealizado de estudante-professor: jovem, normotípico, emocionalmente estável, com plena mobilidade e autonomia. Na prática, esse perfil exclui uma imensa gama de sujeitos — e os força a se adaptar a currículos e metodologias que não dialogam com suas vivências.
Já nas universidades, professores com deficiência relatam a precariedade dos ambientes físicos e digitais, a falta de recursos de acessibilidade, a inexistência de apoio institucional efetivo. Mesmo no ensino remoto, muitas plataformas não atendem aos requisitos mínimos de acessibilidade.
Nas escolas básicas, é comum que um professor com alguma limitação física ou sensorial receba olhares de dúvida: “mas como ele vai dar aula assim?” — como se a presença da diferença comprometesse automaticamente sua competência. É como se, por trás do discurso progressista, ainda houvesse a suposição inconsciente de que o bom professor é aquele que encarna uma certa “normalidade”. Qualquer desvio, mesmo que não afete seu desempenho, é interpretado como fragilidade.
Mais grave ainda é o capacitismo institucional, camuflado sob o verniz da eficiência, da excelência e da produtividade. Exige-se do professor um desempenho padrão, contínuo, linear. Não há espaço para ritmos próprios, para adaptações no ambiente de trabalho, para processos não convencionais de ensino. As avaliações de desempenho, por exemplo, costumam ignorar o contexto de cada docente, reforçando a ideia de que só existe uma forma “correta” de ser professor. E essa forma raramente contempla corpos e mentes fora da curva.
Há também a dimensão afetiva dessa exclusão. Muitos professores com deficiência relatam o sentimento de estar “fora do ideal docente”, como se tivessem que provar o tempo todo que são capazes, que são suficientemente bons, que merecem estar ali. É uma pressão invisível, mas constante, que corrói a autoestima e o senso de pertencimento. Ao invés de encontrar apoio, escuta e compreensão, esses profissionais muitas vezes lidam com a solidão — a mesma solidão que tentam combater em sala de aula, junto aos alunos.
Em muitos casos, o sofrimento emocional do professor é silenciado sob o discurso da vocação. Espera-se que ele siga em frente, mesmo esgotado, mesmo adoecido, mesmo sem escuta. A romantização do “educador que não desiste nunca” acaba por normalizar a negligência institucional com a saúde mental docente. E quando o sofrimento se torna visível, ele é tratado como falha individual — nunca como sintoma de um sistema excludente.
Mas talvez o ponto mais urgente dessa discussão seja a inversão que ela propõe: o professor não é apenas o sujeito que inclui — ele é também alguém que precisa ser incluído. Reconhecer isso é romper com a lógica hierárquica que coloca o docente como um agente neutro, imune às fragilidades humanas. É assumir que a escola não é feita apenas para os alunos, mas também para os que ensinam. É entender que a verdadeira inclusão começa quando todos os corpos e subjetividades têm lugar — inclusive aqueles que carregam marcas, ruídos, diferenças e dores.
Incluir o professor significa ampliar o conceito de inclusão. Significa pensar em políticas públicas que contemplem não só a presença, mas a permanência e o bem-estar dos docentes com deficiência. Significa revisar os currículos das licenciaturas, os concursos públicos, os ambientes físicos e simbólicos da escola. Significa, sobretudo, escutar. Escutar o professor que não vê, que não ouve, que se move de outro jeito. Escutar o professor que convive com a ansiedade, com a depressão, com o burnout. Escutar o professor que não se encaixa — e que, exatamente por isso, tem muito a ensinar sobre o valor da diferença.
Talvez só possamos falar em inclusão real quando o sistema educacional for capaz de acolher também aquele que ensina. Quando o professor puder entrar na sala de aula sem esconder suas dores, suas singularidades, sua humanidade. Quando ele não for mais invisível no discurso que tanto o invoca.
Porque, afinal, ninguém ensina o que não vive. E ninguém inclui de verdade se não se sente incluído.
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