A dor e a delícia de ser uma mulher autista

Entre silêncios, máscaras e incompreensões, muitas mulheres autistas percorrem caminhos solitários até o diagnóstico. Neste post, inspirado no verso de Caetano Veloso, refletimos sobre a dor e a delícia de ser quem se é quando se vive como mulher no espectro: da confusão ao alívio, da luta ao florescer.

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.”

A frase de Caetano Veloso, na música Dom de Iludir, atravessa gerações com sua beleza crua. E talvez poucas vivências a expressem tão bem quanto a jornada de ser uma mulher autista.

Porque não é só sobre diagnóstico. É sobre viver uma vida tentando se entender em um mundo que insiste em interpretar tudo por fora — os sorrisos contidos, o olhar disperso, o silêncio intenso, a linguagem que não segue roteiros.

Ser uma mulher autista é, muitas vezes, viver sem nome para sua própria existência — até que o nome chegue. E com ele, a dor do que não foi, e a delícia de poder, finalmente, ser.

1. A dor de não saber por que se é diferente

Desde a infância, muitas mulheres autistas relatam sentir-se deslocadas. Não entendem as regras sociais implícitas, imitam as outras para se proteger, mas carregam um cansaço invisível.

São chamadas de:

  • “intensas demais”;

  • “frias e distantes”;

  • “boazinhas até demais”;

  • “ansiosas”, “inseguras”, “problemáticas”.

São diagnosticadas com tudo — menos com autismo. E isso não é acaso. Os critérios diagnósticos foram pensados com base em meninos. A forma como meninas e mulheres vivem o autismo é diferente — e raramente reconhecida.

Essa é a dor de ser o que é, sem saber o que se é.

2. O diagnóstico como libertação

Quando o diagnóstico finalmente chega — muitas vezes na vida adulta — não é raro que venha com lágrimas, silêncio e alívio. A frase: “Agora tudo fez sentido”, começa a ser dita.

O diagnóstico não é um fim. É um começo de uma nova forma de existir. Sem precisar mascarar tanto. Sem se sentir “quebrada”. Sem carregar sozinha a culpa por não caber em moldes que nunca foram feitos para você.

É o início de um luto — pelo que não foi vivido, pelas versões de si que se perdeu para agradar os outros —, mas também de um reencontro poderoso consigo mesma.

3. A delícia de ser quem se é

Se a dor foi longa, a delícia pode ser silenciosa e transformadora.

  • É poder dizer “não” sem culpa.

  • É redescobrir o próprio corpo e seus limites sensoriais.

  • É encontrar na solitude um lar, e não uma prisão.

  • É perceber que você não é “menos mulher” por não performar feminilidade como esperavam.

  • É sentir que, mesmo ainda aprendendo a se acolher, você já não precisa mais se esconder.

Com o diagnóstico, muitas mulheres iniciam jornadas de autoconhecimento, expressão criativa, novas conexões e projetos pessoais. E se permitem viver com autenticidade.

4. Como apoiar essa jornada: um olhar para quem está por perto

Ser mulher autista não é fácil — mas pode ser bonito, principalmente quando não se está sozinha.

Familiares, amigos, parceiros e profissionais podem:

  • Escutar sem pressa de entender;

  • Validar a experiência sem tentar corrigir;

  • Evitar o capacitismo disfarçado de elogio (“nem parece autista”);

  • Incentivar pausas, silencios, tempo — sem culpa;

  • Reconhecer que a mulher autista tem uma identidade complexa, rica, e merece existir em plenitude.

5. O que diz a ciência sobre essa vivência?

Estudos recentes vêm reconhecendo a experiência única das mulheres no espectro, especialmente aquelas com diagnóstico tardio.

  • Camuflagem social (masking) é mais comum e intensa entre mulheres, e está associada a esgotamento e depressão【1】.

  • Muitas mulheres autistas só são diagnosticadas após seus filhos receberem o diagnóstico de TEA【2】.

  • O diagnóstico tardio está relacionado a menor autoestima, maior risco de suicídio e autolesão, especialmente na adolescência e início da vida adulta【3】.

Essas pesquisas reforçam o que tantas já sentem: não reconhecer o autismo em mulheres é um tipo de invisibilidade que machuca — e que pode ser evitado.

Conclusão

Ser mulher autista é, sim, viver a dor de não caber, de não ser compreendida, de camuflar até a exaustão. Mas também é viver a delícia de descobrir-se inteira, possível e verdadeira, mesmo quando isso exige recomeçar do zero.

Como canta Caetano:

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.”

E ser autista — com tudo que isso carrega — é ser muitas coisas. Mas, acima de tudo, é ser. E ser por inteiro.

Referências bibliográficas

  1. Hull, L., Petrides, K. V., Allison, C., Smith, P., Baron-Cohen, S., Lai, M. C., & Mandy, W. (2017). Gender differences in self-reported camouflaging in autistic and non-autistic adults. Autism, 21(6), 819–829.

  2. Bargiela, S., Steward, R., & Mandy, W. (2016). The Experiences of Late-diagnosed Women with Autism Spectrum Conditions: An Investigation of the Female Autism Phenotype. Journal of Autism and Developmental Disorders, 46(10), 3281–3294.

  3. Cassidy, S., Bradley, L., Shaw, R., & Baron-Cohen, S. (2018). Risk markers for suicidality in autistic adults. Molecular Autism, 9(1), 1–14.

  4. Attwood, T. (2007). The Complete Guide to Asperger’s Syndrome. Jessica Kingsley Publishers.

  5. Rede Nacional de Cuidados em TEA (2024). Guia de diagnóstico e apoio para mulheres autistas no Brasil.

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