A psicóloga e pesquisadora Nora Cavaco fala sobre os desafios do diagnóstico de autismo em meninas e mulheres, o impacto da camuflagem social e a importância de intervenções especializadas. Com vasta experiência clínica e acadêmica, ela compartilha reflexões potentes sobre inclusão, sofrimento psíquico e caminhos de cuidado.
Nora, o que te motivou a dedicar sua trajetória profissional à compreensão do autismo — especialmente no contexto feminino?
A minha trajetória profissional sempre teve por base, uma motivação intrínseca. Ajudar com o meu conhecimento crianças e jovens, que pudessem cruzar o meu caminho, assim como às suas famílias, no sentido de minimizar o sofrimento dos mesmos, relativamente às exigências sociais, às cobranças, que a sociedade entende como correto e típico, traçou sem dúvida o meu percurso. A compreensão do autismo e a busca para o seu entendimento sempre esteve relacionado com uma vontade de contribuir para uma melhor qualidade de vida desta população específica, assim como desenvolver práticas que os conduzisse a aprender e a comunicar de forma mais ajustada e inclusiva. O autismo sempre despertou em mim muito interesse, precisamente pelas dificuldades apresentadas pelo espectro das mesmas. O autismo feminino sempre existiu, mas foi de alguma forma ignorado, negligenciado pela sociedade, mascarado. Nos últimos anos dediquei-me ao estudo do autismo no feminino, tentando encontrar padrões persistentes, critérios sólidos que nos fizesse entender que aquela menina, jovem ou mulher tinham uma condição peculiar, que não pertencia unicamente ao sexo masculino. Muitas vezes diluídos esses padrões comportamentais, comunicacionais/emocionais, pela “permissividade” social no que diz respeito aos sexos e aos gêneros levou a que fossem desconsiderados como quadros do espectro e sim associados como pertença de uma outra psicopatologia ou transtorno, nomeadamente mutismo, fobia social entre outros. A minha trajetória surgiu da necessidade de resposta a estas evidências e à necessidade de desconstrução de mitos sobre a realidade do espectro. Este manifesta-se em ambos os sexos, mesmo que num número menor, mas igualmente impactante e limitativo, caso não seja devidamente diagnosticado e intervencionado, conduzindo a depressões profundas de quem vive esta realidade, levando ao agravamento da condição cognitiva, perceptiva e de uma forma geral da funcionalidade, prejudicando o desenvolvimento harmonioso e a uma maior qualidade de vida.
Em sua prática clínica, o que considera mais desafiador ao avaliar meninas e mulheres com manifestações atípicas do espectro?
A maior dificuldade é romper as barreiras de cada autista. Estas barreiras podem oscilar e variar como as tonalidades de uma cor… . Sabendo que na base do autismo a inflexibilidade cognitiva é uma realidade, a desconstrução de crenças, associadas a comportamentos limitativos torna-se muitas vezes difícil… e quando se consegue, quase imperceptível. Considero fundamental perceber se a modificabilidade comportamental da pessoa com autismo teve como princípio, o entendimento e as consequências da prática desajustada, e das suas mudanças. Outro desafio é a regulação emocional através da lógica experiencial, isto é, que a autista consiga regular a intensidade das suas emoções através de modelos significativos para ela. Todo este trabalho envolve os pais e pares que a envolve para que seja possível generalizar e replicar as aprendizagens. Desta forma podemos dizer que aprendeu e que estamos realmente a trabalhar para a sua melhor adequabilidade social.
Quais fatores sociais ou culturais você acredita que mais dificultam a aceitação e compreensão do diagnóstico em mulheres?
Em primeiro lugar considero que a própria internalização da mulher, das suas dificuldades e fragilidades, como algo que pertence e surge como comum, no sexo feminino, por fatores sociais e culturais. Algo que a sociedade permite mais à mulher e isso “disfarça”, mascara e dificulta o diagnóstico. Em segundo lugar a gestão e regulação emocional, também na mulher é algo que é mais permissível, comum e desta forma não tão considerado. Quadro depressivo, resistências sociais, uma maior expressividade emocional e comportamental, foi sempre mais comum na mulher, pela sociedade e em determinadas culturas. Esta negligência no olhar do outro, perante a apatia ou extrema intensidade comportamental levou, a que os verdadeiros números e estatísticas no que diz respeito ao autismo feminino, não correspondesse à realidade. Ainda existe muito preconceito o que tem dificultado a realização do diagnóstico e às práticas, muitas vezes tardias, mas tão emergentes no feminino. Existe ainda uma enorme dificuldade de integração e inclusão de mulheres autistas no mundo do trabalho, esta neurodiversidade ainda enfrenta muitas barreiras e desafios.
Como sua experiência na educação infantil influencia a forma como você identifica sinais precoces em meninas autistas?
O meu percurso na educação é fundamental e surge como uma mais-valia para a atuação clínica. A intervenção precoce é emergente para a minimização da intensidade dos padrões mais limitativos e disruptivos. O olhar clínico em contexto educacional permitiu-me exercer uma prática reflexiva, baseada em critérios observacionais com registos assíduos de comportamentos padrão, das formas comunicacionais ou da sua inexistência. A educação infantil permitiu-me ser uma facilitadora de aprendizagens para todas as crianças potenciando o seu melhor. A dimensão pessoal de cada criança permite-nos perceber a construção e a modelagem da sua personalidade através dos ambientes envolventes e com que interage. É possível diagnosticar cada vez mais cedo, entender a neurodiversidade no feminino e atuar em conformidade, visando o que pode ser mais potenciador e benéfico para cada menina. Sem filtros preconceituosos, sem crenças distorcidas, e ausente de mitos limitativos, a educação infantil possibilita-nos práticas mais inclusivas, mais personalizadas e mais funcionais.
Que tipo de intervenção interdisciplinar você considera mais efetiva quando falamos de mulheres autistas adultas ainda em sofrimento psíquico sem diagnóstico?
A psicologia sem dúvida. Esta ciência tem abordagens generalistas e especificas baseadas em evidências que possibilitam as autistas adultas entenderem o que sentem, o que fazem, assim como as suas emoções e as razões porque desenvolvem os seus rituais e compulsões. A intervenção psicológica permite à neurodivergente um maior entendimento sobre si mesma, libertando-a um pouco mais dos constructos sistêmicos, sociais. A DBT, a intervenção ABA e a TCC, (considerando os níveis de suporte e a capacidade cognitiva e perceptiva de cada mulher) são abordagens com resultados validados na melhoria da condição psíquica da mulher com autismo.
Quais as características do autismo feminino que mais confundem os profissionais ou são atribuídas a outros transtornos?
O autismo é uma condição neurodesenvolvimental, que impacta ao longo da vida afetando a funcionalidade geral da pessoa com este quadro clínico. A dimensão comunicacional, social e relacional, assim como o comportamento da pessoa com TEA, é específica e peculiar. É importante perceber também que, dependendo no grau ou nível de gravidade ou intensidade, com que se manifesta o autismo (Nível I, II e III de suporte) – as dimensões referenciadas, pode ser mais ou menos visível e percetível. Perante um conjunto de comportamentos (ritualísticos, obsessivos, opositores – verbais e não verbais, e de desregulação emocional), interesses e motivações, assim como sociais podemos verificar a existência de padrões consistentes que nos permitem chegar ao diagnóstico de autismo.
Relativamente às características do autismo no feminino, estas não são muito diferentes das do masculino, estes é que realmente foram mais estudados e analisados no passado pela prevalência em número. No entanto, é importante entender aspetos sociais e educacionais, que se revelam fatores importantes, para que pareçam muito diferentes entre os sexos. Um desses aspetos é a cedência à expansividade emocional a que muitas vezes não se permite ao sexo masculino, ou se denota neste, mais desenquadrado, mais relevante e evidente.
Muitas vezes e por estas questões, estas caraterísticas no feminino são menos expansivas, até mesmo camufladas por um conjunto de crenças e justificações, para a presença de dificuldades e comprometimentos apresentadas por meninas/mulheres, nas áreas comunicacionais, sociais e emocionais. Esta camuflagem está relacionada a estratégias de adaptação social e ao ambiente disfarçando a presença dos critérios para o diagnóstico de TEA. Pode conduzir ainda a quadros distímicos, de depressão, ansiedade e fobia social, entre aqueles quadros clínicos mais comuns. Muitas mulheres autistas são confundidas como fóbicas sociais, com transtorno borderline, opositoras desafiadoras, ou até mesmo psicóticas ou com esquizofrenia. Um diagnóstico errado e uma interpretação minimalista poderá comprometer a correta intervenção clínica e educacional assim como o desenvolvimento da mulher autista.
Existe diferença entre os interesses restritos de meninos e meninas autistas? Como isso pode afetar o reconhecimento do TEA nelas?
Pode existir sim. No feminino muitas vezes pela presença subtil, pela “máscara” adaptativa aos ambientes e pela intensidade dos comportamentos percebidos podem dificultar o reconhecimento do autismo em mulheres. O que se torna emergente estudar os seus comportamentos, identificar as características e os padrões nos mais diversos contextos. No feminino sabemos que existe uma maior intensidade na manifestação comportamental e emocional no nível I e no nível III. É de realçar os fatores sociais permitidos, assim como os educacionais, o que muito contribuem para a negligência dos indicadores que fecham o quadro de autismo. Especificamente aos interesses restritos estes estão muitas vezes associados aos seus hiperfocos, experiências familiares ou ambientais contextuais como a moda, animais, alimentação. Todas estas questões aqui levantadas podem afetar verdadeiramente o reconhecimento do TEA no feminino, o importante é entendermos a existência dos critérios a permanência dos mesmos a temporalidade com que se manifestam. Não podemos esquecer que esses critérios, estão ligados a questões sociais comunicacionais e comportamentais, podendo estas ser mais ou menos subtis. O autismo no feminino está muito associado à nova concetualização da existência da ideia de fenótipo ampliado o que quer dizer que, pode parecer não cumprir na totalidade e integra os critérios diagnósticos (pela subtileza e sensibilidade) mas que estão lá.
Em sua prática, já acompanhou casos de mulheres que passaram anos buscando respostas antes do diagnóstico?
Sim já. O autismo no feminino é mais intenso mas mais mascarado. Várias crianças e jovens assim como adultas já passaram pelo meu consultório e foram alvo de uma avaliação complexa, pormenorizada, ao detalhe, na procura de padrões consistentes que preencham os critérios nucleares para um diagnóstico. O sofrimento é enorme, sentem que são diferentes (no nível I de suporte). A procura por respostas às dificuldades enormes em socializar, em permanecer em ambientes com várias pessoas, em conseguir um trabalho mais tranquilo, mais individualizado e restrito, torna-se um desafio e uma enorme dificuldade pelos medos sentidos. A procura de respostas por especialistas, médicos e técnicos é uma realidade e atribuem-lhes um conjunto de patologias e/ou psicopatologias, como se fossem quadros clínicos independentes e na realidade não o são. Desta forma reitero a necessidade de aprofundamento no tema, estudo e formação especializada, sobre a verdade do autismo para minimizar o isolamento, a incompreensão e o sofrimento da pessoa autista.
Como o diagnóstico pode mudar a vida de uma mulher autista que foi invisibilizada por tanto tempo?
O diagnóstico correto pode ser desafiador, mas devolve a paz e o entendimento do que tem sido a vida incompreendida destas mulheres. Dificuldades em frequentar e manter-se em espaços de inúmeras pessoas, ruídos, entre outros estímulos e gatilhos, podem levar a comportamentos de risco, de limite.
As diferenças na apresentação dos sintomas das mulheres relativamente aos homens, pode conduzir a um diagnóstico tardio. Desta forma devemos estar atentos a questões que muitas vezes normalizamos que é a (in)capacidade de manter contacto visual, de se conectar e encaixar na sociedade neurotípica, desenvolvendo assim depressão, ansiedade entre outras problemáticas igualmente limitativas. O diagnóstico correto instala e devolve serenidade e a possibilidade de um correto autoconhecimento e a ajuda mais adequada para a aquisição de habilidades e gerenciamento emocional.
Qual o papel da escola no reconhecimento de sinais precoces, especialmente em meninas?
O papel da escola é muito importante. A escola é o espaço de saber, e hoje essa diferenciação entre gêneros e sexos não deve existir por crenças e mitos instalados. O autismo é uma realidade nas meninas e por vezes mais impactante e limitativo. A escola é o lugar onde a criança passa o maior número de horas, desta forma, é crucial que os que fazem parte desta instituição, estejam sensibilizados, preparados, para realizar um despiste, saber sinalizar e referenciar comportamentos e situações, que possam contribuir para um diagnóstico cada vez mais precoce, e uma ação técnica, seja docente ou de saúde, mais eficaz e eficiente. Não devemos jamais minimizar os sinais que podem indicar o neurodivergente. Um olhar atento pode salvar crianças, jovens e famílias através de um correto encaminhamento psicoeducativo, psicológico/psiquiátrico, entre outros. O professor pode ser aquele que lado a lado com a família contribui, para a promoção da saúde mental das suas crianças. Comportamentos de isolamento, extrema resposta ou apatia aos estímulos, inação ou inércia, assim como agitação, desatenção e dificuldades de comunicação são sinais emergentes. A escola é um espaço de educação e de promoção de saúde.
Como a família pode ajudar a perceber indícios de autismo em uma filha, irmã ou mesmo mãe?
A família é o lugar da criança. O primeiro, o que deve ser securizante e estruturante da criança. O planeamento familiar assim como a formação para a parentalidade, hoje deve ser uma realidade necessária. A desconstrução da criança ideal para a criança real, deve ser trabalhada na parentalidade. Conhecer o que está implícito no desenvolvimento típico e atípico pode ajudar a perceber o que pode não estar presente naquele estágio de desenvolvimento. Desde bebê a criança dá sinais da sua intencionalidade comunicativa. Esta pode estar presente ou ausente. A expressão visual, a responsividade física e expressiva emocional são indicadores desde o momento diádico (primeiros momentos sociais) com a mãe ou cuidador. A família deve conseguir ajudar com o suporte médico, pediátrico o seu filho. Se algo sai do que é considerado ajustado (pelas repetições, ou ausências sentidas de algo que na visão dos pais deve estar presente na criança) os pais devem procurar respostas especializadas e entendidas em desenvolvimento humano. Não há vítimas nem agressores… o nosso papel enquanto cuidadores é proporcionar as melhores situações para um crescimento global mais saudável e feliz dos filhos.
A senhora acredita que o diagnóstico de autismo em mulheres tem avançado nos últimos anos?
Sim acredito. O conhecimento tem sido mais alargado, a sensibilidade para estas questões é maior, assim como as estatísticas e as evidências. Hoje abordamos o autismo no feminino com normalidade, com a plena noção que não é só pertença no masculino, mas que todas as reações atípicas emocionais intensas, que ocorrerem nos vários contextos ocorrem no feminino também. O que antes estava justificado pela permissividade educativa e social, no que diz respeito aos gêneros, hoje escrutinamos como algo que pode estar inerente a uma condição, muitas vezes, com respostas aflitivas e pedidos de socorro, devido a exigências e exposições insuportáveis colocadas pela sociedade. Por isso a emergência do conhecimento e da formação sobre quais os procedimentos a seguir para minimizar o agravamento da pessoa com autismo. Mas estou feliz com os avanços atuais. Muito ainda há por fazer, mas já não permanecemos na escuridão do desconhecido.
Para os profissionais que querem se atualizar sobre TEA em mulheres, que caminhos ou formações você recomendaria?
Formação especializada em autismo. Fazer melhores escolhas a nível de conteúdos formativos. Hoje temos a oportunidade de alcançar o melhor, e fazer escolhas além fronteiras, através das novas tecnologias. Procurar práticas baseadas em evidências, trabalhar em, e com, equipas multitransdisciplinares; fazer parte das instituições e ambientes onde as crianças e jovens com autismo se inserem. Tudo em conexão permite-nos a aplicação da teoria mais atualizada. A melhor formação é aquela que nos permite ampliar e aplicar os conhecimentos em conformidade com a individualidade. Não sou defensora de práticas definidas e estanques ou só de uma prática. O conhecimento profundo e pleno sobre o Ser Humano deve permitir-nos ampliar o nosso leque formativo para direcionar a intervenção que melhor se encaixa no autista, que precisa de funcionalidade, de adequações, de habilidades. A mulher autista deve corresponder ao conjunto de critérios que define o diagnóstico, mas este cabe em cada mulher e é nesse sentido, que deve ser respeitada e desta forma, o plano de trabalho ajustado. A formação ABA, a formação em TCC com a técnica da psicoeducação, e em DBT permite-nos oferecer as melhores práticas, para a realidade do autismo no feminino e no masculino.
Por fim, que mensagem gostaria de deixar para as mulheres que se reconhecem autistas, mas ainda não tem um diagnóstico formal?
A mensagem que lhes deixo é que elas são especiais, únicas e que não devem deixar de procurar as melhores respostas para a sua situação e condição. Que existem caminhos que lhes facilitam o processo social, de integração e inclusão. Mesmo que o diagnóstico seja tardio ele existe, é possível. Que procurem ajuda, apoio e encaminhamento profissional. O diagnostico é só um ponto de partida, para um processo longo mas que pode ser feliz, pelas aquisições alcançadas, pela qualidade de vida que podem vir a ter. É preciso reconhecer e valorizar a diversidade. Devem procurar o suporte para desenvolverem potencialidades e desta forma permitirem-se cuidar da sua saúde física e mental, e desenvolver o potencial que lhes é inerente. Não há fins e sim princípios, para isso devemos investir na formação, no conhecimento. Hoje estamos mais habilitados para cuidar e educar melhor, cada um que de nós precisa.
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