ENTREVISTAS

Dayse Serra

Doutora em Psicologia Clínica, ⁠Mestre em Educação Inclusiva, ⁠Membro da Comissão Científica da Abenepi – Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria, ⁠Psicopedagoga Especificada em TEA, Criadora do Método de Alfabetização de Alunos Autistas. Autora dos Livros “Matemática Para Alunos Com TEA Vol 1 e 2”, “Atividades de Alfabetização Para Alunos com TEA” e “Alfabetização de Alunos com TEA Vol 1, 2 e 3”. Publicados pela Wak Editora.

Alfabetização de crianças autistas: caminhos práticos a partir dos estilos cognitivos

Nesta entrevista, a psicóloga Dayse Serra esclarece como a alfabetização de crianças autistas pode ser eficaz, levando em conta os diferentes estilos cognitivos. Saiba quais são os primeiros passos após o diagnóstico e como família e escola podem atuar em conjunto para apoiar o desenvolvimento.

O que os pais mais precisam saber nos primeiros meses após o diagnóstico de autismo?

Logo após o diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA), o que os pais mais precisam entender é que esse diagnóstico não é uma sentença, mas sim um ponto de partida para buscar caminhos de tratamento. É importante que as famílias recebam orientações e informações adequadas, levando em conta a idade da criança, o contexto familiar e a necessidade de psicoeducação.

Quanto antes for possível iniciar intervenções e avaliações, melhor será para o desenvolvimento da criança. Sabemos que nem sempre há acesso fácil às intervenções precoces, mas é fundamental agir o mais cedo possível.

Além disso, é essencial esclarecer que não é necessário realizar muitas terapias simultaneamente. Não existe um pacote único ou um formato padrão de tratamento e educação para todos os casos. Cada criança, adolescente ou bebê diagnosticado possui necessidades específicas, e o plano de intervenção precisa levar em consideração o perfil individual.

O planejamento envolve definir quais terapias serão prioritárias, quantas horas por semana são recomendadas, se haverá necessidade de adaptações na creche ou escola, e que tipo de ajustes curriculares serão adequados. Também será necessário determinar quais médicos irão acompanhar a criança e, principalmente, quais são os direitos dela a partir desse momento.

É essencial informar às famílias que uma criança com TEA apresentará dificuldades na comunicação social, além de interesses restritos ou comportamentos repetitivos. Essas características podem não aparecer necessariamente como movimentos repetitivos visíveis (estereotipias), mas talvez como hiperfocos específicos. Além disso, há uma grande variação quanto ao nível intelectual, às habilidades cognitivas e à autonomia na vida diária entre pessoas com TEA.

Após o diagnóstico, dependendo de como ele tenha sido obtido, seja por meio de um médico ou inicialmente por uma avaliação neuropsicológica, é muito importante complementar essa avaliação. A avaliação neuropsicológica é fundamental para confirmar o diagnóstico, compreender as particularidades do quadro e, em seguida, encaminhar a criança para acompanhamento médico especializado, dando início às intervenções adequadas nas áreas de saúde e educação.

Como os familiares podem lidar com a sobrecarga emocional inicial?

É importante entender que ter um filho dentro do espectro autista não é culpa de ninguém. Não adianta buscar responsáveis, tentar descobrir se veio do pai ou da mãe. Sabemos que o autismo tem uma origem genética, mas isso não quer dizer que seja necessariamente hereditário. O importante é compreender que o TEA é uma condição genética, ou seja, a criança já nasce autista. Mesmo que os sinais sejam percebidos só mais tarde, eles sempre estiveram presentes. Por isso, é tão fundamental realizar o monitoramento adequado durante a infância.

Qual é a principal falha das escolas (públicas ou particulares) na inclusão de alunos com TEA?

Sobre a inclusão dos alunos com TEA, a primeira necessidade que temos é a formulação de políticas públicas. Não adianta um professor sozinho fazer uma boa inclusão, promovendo aprendizagem e desenvolvimento, se, ao mudar de ano ou de escola, o estudante perde essa continuidade e seu desenvolvimento fica prejudicado. Por isso, precisamos de políticas públicas que ofereçam um suporte amplo e contínuo.

A escola, muitas vezes, é o único espaço de inclusão para crianças autistas. Como melhorar isso?

A melhoria começa pela formação dos professores. Essa formação deve garantir que o professor compreenda com qual criança está lidando, entenda o que é o TEA, quais são suas especificidades, necessidades individuais e que tipos de adaptações serão necessárias no ambiente escolar – como questões sensoriais e até mesmo alimentação adaptada.

Outro aspecto essencial é que o próprio professor receba suporte adequado, pois não existe uma pessoa com TEA que não precise de suporte. O nível pode variar de leve a moderado, mas sempre haverá alguma necessidade. Por isso, o professor também precisa contar com apoio, como o auxílio de um mediador. Esse mediador não deve apenas apoiar o aluno diretamente, mas também ajudar o professor no planejamento das atividades, nas questões comportamentais, com o suporte da direção da escola e na orientação da família.

É fundamental, ainda, orientar os outros alunos da escola para evitar casos de bullying, especialmente durante a adolescência, quando isso costuma acontecer com frequência. É necessário explicar claramente as diferenças do colega com TEA.

Outro ponto prioritário é a elaboração do Plano Educacional Individualizado (PEI), um direito obrigatório do aluno com TEA. Esse documento deve ser entregue à família até 45 dias após o início do ano letivo. Além disso, é preciso capacitar os professores para realizar adaptações curriculares adequadas, garantindo que o aluno não fique abaixo ou acima do nível apropriado, mas siga acompanhando seu próprio progresso pedagógico.

Hoje, infelizmente, enfrentamos a falta de vagas nas escolas, a escassez de mediadores e a formação ainda insuficiente de professores para dar conta dessa inclusão. Precisamos entender que a formação do educador não acaba no curso de licenciatura; é necessário continuar se aperfeiçoando ao longo da vida profissional, incluindo participação em seminários e congressos, com o devido apoio institucional e remuneração adequada pelo tempo gasto fora da escola preparando materiais. Portanto, trata-se de um esforço coletivo, que depende muito das políticas públicas nacionais.

É possível alfabetizar toda criança autista? O que define o sucesso desse processo?

Sim, é possível alfabetizar um aluno com TEA em qualquer faixa etária, porém o sucesso desse processo depende muito das condições cognitivas de cada indivíduo. Nem toda criança ou jovem com autismo conseguirá se alfabetizar, mesmo que utilize metodologias específicas e trabalhos adaptados. Isso ocorre porque nem sempre a cognição estará preservada o suficiente para garantir a memória, o processamento e a generalização das informações necessárias à leitura e à escrita.

Por isso, é fundamental realizar uma avaliação completa para compreender se essa criança apresenta atraso cognitivo, se possui suas funções cognitivas e executivas preservadas, e se as habilidades prévias à leitura estão presentes ou podem ser desenvolvidas.

Nos casos de TEA associado a uma deficiência intelectual significativa, a alfabetização pode ser um processo bastante complexo. Isso não significa que devemos desistir, mas também não é correto gerar falsas expectativas sobre o que pode ser alcançado, dependendo do nível de suporte necessário. Nesses casos específicos, existem métodos e procedimentos próprios para tornar o processo de alfabetização mais eficiente.

Como a família pode atuar de forma mais ativa na vida escolar do filho?

Sobre a relação entre família e escola, é preciso lembrar que, enquanto os educadores passam poucas horas diárias com a criança, a família tem muito mais tempo com ela e conhece profundamente suas particularidades. Por isso, é essencial que haja abertura para a participação familiar dentro da escola, permitindo aos pais fornecer informações valiosas sobre seus filhos e receber orientações claras sobre como ajudar em casa, quais comportamentos favorecem ou prejudicam o desenvolvimento e como estimular a aprendizagem de maneira eficiente.

Um exemplo prático é a questão da alimentação. Algumas crianças apresentam seletividade alimentar intensa, e nesses casos é fundamental o diálogo da família com a escola e a nutricionista para desenvolver um cardápio adaptado.

A comunicação aberta sobre questões relacionadas à saúde e comportamentos desafiadores também pode evitar situações que atrapalhem o envolvimento da criança no ambiente escolar.

Que tipo de parceria entre escola e família é ideal no caso do TEA?

É essencial que a escola esteja aberta a acolher a família, especialmente por causa das questões emocionais envolvidas. Vários estudos apontam o alto nível de estresse enfrentado por pais de pessoas com TEA, comparável ao de soldados em zonas de conflito. Quem convive com um TEA grave, especialmente em situações de agressividade ou crises de comportamento, enfrenta uma rotina muito pesada.

Muitas vezes, um dos pais precisa deixar de trabalhar para cuidar da criança, aumentando as despesas com terapias, medicações e educação especializada, enquanto a renda familiar diminui. Por isso, o acolhimento emocional e até mesmo psicológico dos pais deve fazer parte de qualquer plano terapêutico. Quando os pais são bem orientados e apoiados emocionalmente, o desenvolvimento das crianças costuma evoluir de forma muito mais positiva.

Que conselho você deixaria para pais ou responsáveis que se sentem perdidos nesse processo?

Por fim, eu diria aos pais que escolham com muito cuidado os profissionais e as instituições que cuidarão dos seus filhos. É fundamental observar a experiência e a formação especializada dos profissionais envolvidos, porque a boa intenção, sozinha, não é suficiente; é preciso saber exatamente o que está sendo feito.

Também é importante não ceder ao desespero e evitar sobrecarregar a agenda da criança com terapias excessivas. Em muitos casos, menos é mais, e cada criança terá um perfil específico que exige um planejamento terapêutico individualizado.

Vale lembrar que não existe uma escola ideal ou um método pedagógico perfeito para todos. O importante é encontrar uma escola aberta ao diálogo e às adaptações necessárias ao desenvolvimento individual de cada criança. O desespero só atrapalha e pode levar a decisões equivocadas.

Por fim, a grande meta é apoiar a criança no desenvolvimento de sua autonomia, sua capacidade funcional e adaptativa, além de celebrar cada pequena vitória ao longo desse caminho. Espero, sinceramente, ter colaborado.

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