Menstruação, sexualidade e corpo: como o autismo afeta a vivência feminina

A relação com o corpo, a menstruação e a sexualidade pode ser complexa para muitas mulheres autistas. Questões sensoriais, dificuldades de comunicação e pressão social afetam profundamente essa vivência. Neste post, abordamos como o autismo influencia a percepção corporal e sexual, e como oferecer apoio respeitoso e neuroafirmativo.

A construção da identidade feminina envolve fatores biológicos, sociais e emocionais — e para mulheres autistas, esse processo pode ser especialmente desafiador. A menstruação, o contato físico, a autoimagem e a sexualidade são vivências que muitas vezes se tornam fonte de ansiedade, desconforto ou confusão.

Falar sobre sexualidade no autismo feminino é romper tabus, ampliar o olhar e reconhecer que mulheres autistas vivem o corpo e o desejo de formas diversas. Ainda hoje, essas experiências são pouco discutidas, o que gera desinformação, vulnerabilidade e isolamento. Este post se propõe a trazer visibilidade, cuidado e conhecimento sobre o tema.

1. Percepção corporal: quando o corpo é um território sensível

Mulheres autistas frequentemente relatam hiper ou hipossensibilidade sensorial — ou seja, uma percepção aumentada ou diminuída de estímulos táteis, visuais, auditivos e internos (como dor ou fome). Isso pode afetar diretamente a forma como lidam com o próprio corpo:

  • Desconforto com roupas apertadas, absorventes ou toque;

  • Dificuldade de identificar sensações internas (como cólicas ou excitação);

  • Baixa consciência corporal e coordenação motora;

  • Sensação de “desconexão” com o próprio corpo (despersonalização).

Esses aspectos influenciam não só a relação com a sexualidade, mas também com a higiene pessoal, o autocuidado e a saúde íntima.

2. Menstruação: uma experiência sensorial intensa

A menstruação costuma ser uma fase difícil para muitas meninas e mulheres autistas. Além das alterações hormonais, os estímulos sensoriais se intensificam:

  • Dor e cólica mais difíceis de regular;

  • Sensibilidade aumentada a cheiros, texturas ou umidade;

  • Dificuldade com o uso de absorventes, coletores ou calcinhas menstruais;

  • Alterações de humor que intensificam crises de meltdown ou shutdown.

Algumas adolescentes podem não entender o que está acontecendo com seu corpo, especialmente se tiverem atrasos na linguagem, alexitimia (dificuldade de nomear emoções) ou baixa orientação corporal. Por isso, educação menstrual acessível e concreta é essencial — com linguagem visual, explicações sensoriais e acolhimento contínuo.

3. Sexualidade no autismo feminino: entre silêncio e vulnerabilidade

Ao contrário do que se imagina, mulheres autistas têm desejos, sentimentos e curiosidade sobre sexualidade — mas com vivências particulares. Elas podem:

  • Ter dificuldade para expressar o interesse sexual ou romântico;

  • Não perceber sinais de flerte ou insinuações de parceiros;

  • Sentir excitação e desejo, mas ao mesmo tempo rejeitar o toque;

  • Ser hipersensíveis a beijos, cheiros, saliva ou contato íntimo;

  • Ter bloqueios emocionais por experiências anteriores negativas ou abusivas.

Infelizmente, a falta de informação clara e acessível sobre consentimento, limites e proteção sexual coloca essas mulheres em risco. Estudos apontam que mulheres autistas têm mais chances de sofrer abuso sexual do que mulheres neurotípicas【1】.

4. Intimidade e toque: uma construção possível e adaptada

Nem todas as mulheres autistas têm aversão ao toque — mas muitas precisam que ele seja previsível, seguro e consentido. A intimidade pode ser vivida com prazer, desde que respeite os seguintes aspectos:

  • Comunicação clara sobre limites (inclusive com uso de CAA ou scripts);

  • Criação de rotinas sensuais adaptadas ao perfil sensorial;

  • Escolha consciente do momento, ambiente e tipo de contato;

  • Reconhecimento de que o prazer não segue um modelo único.

A sexualidade no autismo feminino não precisa ser neurotípica — ela pode ser silenciosa, lúdica, criativa, não genital, com pausas e sem culpa.

5. O que fazer na prática: apoio à vivência corporal e sexual

  • Educação sexual acessível e inclusiva, com recursos visuais, linguagem simples e explicações sensoriais;

  • Respeito ao corpo da mulher autista em qualquer idade: sem toque não consentido, sem infantilização;

  • Acompanhamento ginecológico humanizado, com escuta, explicações e adaptações sensoriais;

  • Espaços seguros para falar sobre desejo, prazer, limites e vulnerabilidades;

  • Profissionais capacitados em sexualidade e neurodiversidade, que ofereçam acolhimento sem julgamentos ou estigmas.

Conclusão

A vivência do corpo e da sexualidade pelas mulheres autistas é legítima, complexa e diversa. Respeitar seus ritmos, seus limites e seus desejos é um passo essencial para garantir autonomia, prazer e segurança. Falar sobre sexualidade no autismo feminino não é apenas necessário — é um ato de cuidado, escuta e dignidade.

Referências bibliográficas

  1. Pecora, L. A., Hancock, G. I., Mesibov, G. B., & Stokes, M. A. (2020). Sexuality and Relationship Experiences of Women on the Autism Spectrum: A Systematic Review. Research in Autism Spectrum Disorders, 72, 101513.

  2. Attwood, T. (2007). The Complete Guide to Asperger’s Syndrome. Jessica Kingsley Publishers.

  3. Steward, R., Crane, L., Mandy, W., & Happé, F. (2020). ‘I have more control over my life’: Autistic women’s experiences of menstruation. Autism, 24(6), 1521–1532.

  4. Mandy, W., & Tchanturia, K. (2015). Do women with autism who have eating disorders differ on autistic traits and clinical profiles from those with anorexia nervosa? European Eating Disorders Review, 23(6), 454–461.

  5. Organização Mundial da Saúde (OMS). (2022). CID-11 – Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.

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