O Dr. Richard Munhoz, psicanalista clínico, psicopedagogo e doutor em Ciências Médicas, fala sobre o papel do brincar e da linguagem na clínica do autismo. Na entrevista, ele destaca como o brincar revela o mundo interno da criança, favorece a comunicação e pode ser um caminho essencial para o desenvolvimento emocional e simbólico. Sua visão integra psicanálise e psicopedagogia, trazendo reflexões valiosas para profissionais, famílias e educadores.
Como a psicanálise pode nos ajudar a compreender o brincar no contexto do autismo?
Na psicanálise, o brincar é concebido como via privilegiada de simbolização e acesso ao mundo interno. Em muitas crianças autistas, encontramos formas de jogo que parecem menos voltadas ao “faz-de-conta” e mais à previsibilidade sensório-motora (alinhamentos, giros, repetições). Longe de serem “vazias”, tais sequências funcionam como arranjos protetivos frente ao excesso de excitação ou à dificuldade de integrar experiências (Tustin, 1981; Meltzer, 1975). A tarefa clínica é sustentar um ambiente suficientemente bom — holding, handling e apresentação do objeto — para que elementos sensoriais brutos possam ser metabolizados em experiências pensáveis (Winnicott, 1951/1975; Bion, 1962).
Do ponto de vista do desenvolvimento, jogos rítmicos e rotinas partilhadas organizam atenção, turn-taking e co-regulação afetiva, pré-requisitos da linguagem e da intersubjetividade (Trevarthen& Aitken, 2001; Bruner, 1983). Achados neurocognitivos sugerem que a previsibilidade e o acoplamento sensório-motor favorecem redes de integração (salience/fronto-insulares) e reduzem a incerteza perceptiva, tema coerente com modelos de codificação preditiva no autismo (Pellicano & Burr, 2012; Lawson et al., 2014).
De que forma o brincar revela o mundo interno e as experiências psíquicas da criança autista?
O brincar mostra como a criança regula ansiedade, busca segurança e ensaia vínculos. Repetições e padrões rígidos podem expressar necessidade de “selar” o contorno do self contra intrusões, compondo uma defesa frente ao impensável (Tustin, 1981). O clínico observa micro-variações que indicam deslocamentos da função puramente sensorial do objeto para um uso transicional e depois simbólico — sinais de que a experiência começa a se inscrever como representação (Winnicott, 1971; Klein, 1932/1997).
O jogo também torna visíveis relações de objeto e fantasias: quem controla, quem invade, quem some e retorna. Esses enredos, ainda que mínimos, permitem trabalhar ansiedades de desintegração e culpa em doses toleráveis, catalisando a passagem do agir para o pensar (Klein, 1932/1997; Alvarez, 1992). Em termos bionianos, a função de “reverie” do adulto transforma descargas sensoriais em significado, possibilitando continência e simbolização (Bion, 1962).
Quais são as contribuições de autores como Winnicott e Melanie Klein para entender o papel do brincar na clínica com crianças autistas?
Klein instituiu a técnica do brincar como equivalente infantil da associação livre: no jogo emergem defesas, posições e ansiedades básicas (Klein, 1932/1997). Em autismo, tal técnica requer afinação do “timming” interpretativo, privilegiando antes a construção de continuidade de ser e a segurança da presença analítica (Alvarez, 1992). A interpretação precipitada, sem base ambiental, pode intensificar vivências persecutórias.
Winnicott acrescenta o conceito de espaço potencial e de objetos transicionais, enfatizando que o brincar ocorre numa área intermediária entre realidade interna e externa (Winnicott, 1971). Muitas vezes é preciso “jogar-junto” antes de “brincar de faz-de-conta”: o terapeuta regula ritmo, pausa e previsibilidade, permitindo que experiências corporais rudimentares se transformem em gestos compartilhados e, depois, em símbolos.
Você poderia explicar como o brincar funciona como um mediador no desenvolvimento da linguagem e da comunicação?
A linguagem emerge de rotinas interativas: olhar, alternância, atenção conjunta e prosódia precedem a palavra (Trevarthen& Aitken, 2001; Bruner, 1983). Jogos de “cadê-achou”, bola vai-volta, cantigas com gestos e pequenas cenas repetíveis instauram turnos e referências partilhadas — a “costura” intersubjetiva onde a fala poderá ancorar-se.
Neurofuncionalmente, sincronias rítmicas e engajamento conjunto modulam redes perisilvianas, temporo-parietais e frontais associadas à linguagem, além de sistemas de integração salience/default-mode, frequentemente descritos como atípicos no TEA (Uddin et al., 2013; Kana et al., 2015). A psicanálise contribui ao lembrar que a palavra, para ganhar estatuto de significante, precisa nascer de uma experiência de endereçamento ao outro, e o brincar oferece esse palco inaugural.
Na sua prática clínica, quais tipos de jogos, histórias ou atividades lúdicas costumam favorecer mais a expressão da criança autista?
Intervenções eficazes costumam combinar previsibilidade e micro-novidade: bolhas de sabão, água/areia, massinha, carrinhos em pistas e livros de sequência curta com onomatopeias. O adulto espelha e narra a ação da criança, introduzindo variações mínimas que convidam ao turn-taking sem romper a segurança (Bruner, 1983; Alvarez, 1992).
Histórias muito simples, repetidas, com ênfase em gestos e sons, ajudam a estabilizar uma cena compartilhada; gradualmente, pequenas lacunas (“e agora?”) promovem iniciativa comunicativa. O critério é sempre clínico: partir do interesse específico da criança, reconhecendo o valor organizador de seus arranjos repetitivos e usando-os como ponte, não como obstáculo (Winnicott, 1971; Greenspan &Wieder, 1997).
Como a psicopedagogia pode se articular com a psicanálise no trabalho com crianças autistas, especialmente no que se refere à linguagem?
A psicopedagogia oferece dispositivos que reduzem carga cognitiva (rotinas, antecipações visuais, sequenciação de tarefas, comunicação alternativa), favorecendo atenção conjunta e organização temporal. A psicanálise sustenta a dimensão transferencial, o reconhecimento do sujeito do desejo e a transformação do vivido em significantes — isto é, dá estatuto subjetivo à aquisição (Kupfer, 2001; Lacan, 1953/1998).
Quando integradas, tais perspectivas permitem trabalhar funções pré-linguísticas (imitação, apontar, pedidos) e a narratividade do brincar. O plano clínico-pedagógico ganha consistência ao articular metas funcionais (p. ex., pedir/recusar, comentar) a um ambiente de holding, no qual o gesto não é apenas resposta correta, mas expressão de um sujeito endereçado ao outro.
Quais estratégias psicopedagógicas você considera mais eficazes para estimular a comunicação em crianças que apresentam atraso ou ausência de fala?
Narrar a ação da criança (“o carro sobe… agora desce”), expandindo suavemente sua iniciativa, é uma estratégia robusta e alinhada ao scaffolding de Bruner (1983). O uso de suportes visuais (sequências, pictogramas, agendas) organiza antecipação e transições, diminuindo ansiedade e liberando recursos para a troca (Bondy&Frost, 1994).
Adoção combinada de gestos/sinais e fala (CAA) amplia canais de expressão sem “atrapalhar” a fala; evidências mostram ganhos práticos quando as metas são individualizadas (Kasari et al., 2006). Em termos psicanalíticos, importa preservar o endereçamento: que a comunicação seja vivida como encontro significativo, e não apenas como desempenho.
Como as atividades sensoriais podem ser utilizadas como recursos terapêuticos para favorecer a interação e a linguagem?
Modulações táteis, vestibulares e proprioceptivas (caixas táteis, balanço suave, compressões leves, água/areia) podem diminuir hiper/hiporresponsividade e melhorar disponibilidade relacional (Ayres, 1972; Dunn, 1999). Quando correguladas por um adulto sensível, tais experiências constituem um “pré-simbolismo” do corpo-em-relação, de onde a linguagem pode emergir.
Ensaios clínicos sugerem benefícios funcionais da integração sensorial quando os objetivos são claros, mensuráveis e personalizados (Schaaf et al., 2014). A bússola psicanalítica ajuda a evitar a armadilha de “estimular por estimular”: a questão não é apenas a sensação, mas a inscrição afetiva compartilhada que torna a experiência narrável.
Quais sinais ou manifestações durante o brincar podem indicar avanços no desenvolvimento emocional e comunicativo da criança?
Sinais clássicos incluem: uso mais flexível dos objetos (de girar/alinhar para combinar funções), aumento de iniciativas de turn-taking, atenção conjunta e imitação; surgimento de proto-faz-de-conta (dar de “comer” ao boneco, fazer dormir) e tolerância a pequenas frustrações (Klein, 1932/1997; Trevarthen& Aitken, 2001).
Observa-se também maior capacidade de esperar a vez, compartilhar conquistas pelo olhar (“olha!”), aceitar micro-novidades sem colapso e produzir narrativas mínimas sobre a própria ação. Em termos bionianos, crescem os sinais de transformação do agir em pensar, com diminuição de defesas evacuativas e aumento de simbolização (Bion, 1962; Alvarez, 1992).
Como lidar com situações em que a criança rejeita ou não se engaja nas propostas de brincar?
Volte ao nível em que o vínculo é possível. Joining — entrar respeitosamente no interesse da criança — costuma ser mais eficaz que insistir em propostas “pedagógicas” alheias ao seu foco (Greenspan &Wieder, 1997). Introduza micro-variações só depois que a previsibilidade estiver consolidada.
Ajustes ambientais (luz, ruído, tempo de sessão), pausas planejadas e ritmos curtos evitam sobrecarga sensorial. Clinicamente, manter o setting confiável enquanto se é flexível no método protege o vínculo transferencial e previne que a recusa se cristalize em retraimento persecutório (Winnicott, 1971).
Em sua visão, qual o papel da empatia e do respeito no trabalho clínico e pedagógico com crianças autistas?
Empatia, aqui, não é “adivinhar sentimentos”, mas oferecer continência: transformar estados brutos em experiências nomeáveis e suportáveis — a reverie bioniana (Bion, 1962). Respeito significa reconhecer um sujeito com ritmo, interesses e modos sensoriais singulares; não há encontro clínico sem reconhecimento dessa diferença (Winnicott, 1960/1975).
Estudos sobre sincronia e co-regulação mostram que o ajuste fino do adulto ao tempo da criança favorece engajamento e linguagem (Trevarthen& Aitken, 2001). Ética do cuidado e neurodiversidade convergem aqui: tratar a diferença como valor e construir participação, não conformidade (Kapp, 2020).
Quais são os desafios mais comuns encontrados pelos profissionais ao trabalhar o brincar e a linguagem em crianças autistas?
Um desafio recorrente é a expectativa adulta de “normalizar” rapidamente o brincar, empobrecendo sua dimensão transicional em nome de protocolos rígidos (Meltzer, 1975). Outro é a subestimação do impacto sensorial-emocional — quando a demanda comunicativa excede a capacidade de regulação, o vínculo se rompe.
Também pesam dificuldades de coordenação entre clínica, escola e família, além de impasses contratransferenciais (impaciência, desânimo) diante de progressos discretos. A resposta passa por planos interdisciplinares, metas graduais e supervisão clínica, mantendo o eixo ético da singularidade.
Como orientar famílias e professores para estimular o brincar de forma significativa no cotidiano da criança?
Proponha rituais lúdicos curtos e repetíveis (músicas com gestos, esconder-achar, jogos de causa-efeito), sempre partindo do interesse da criança. Narre a ação em tempo real, evite bombardear com perguntas, abra “lacunas” para que ela tome a vez e registre pequenas histórias com fotos/palavras para revisitar (Bruner, 1983).
Use suportes visuais para antecipar e transitar entre atividades; privilegie jogos em díade antes de grupos maiores. A métrica de sucesso não é “parecer neurotípico”, mas ampliar participação, prazer e capacidade de endereçar-se ao outro.
Qual a importância de reconhecer o autismo não como uma deficiência, mas como uma forma singular de vivência do mundo, dentro do trabalho clínico?
Tratá-lo apenas como déficit empobrece o horizonte clínico e ético. A psicanálise sustenta que há sujeito e desejo também onde a forma de comunicar é outra; nossa tarefa é favorecer condições de fala e de laço, não de conformidade (Winnicott, 1971; Lacan, 1953/1998).
A perspectiva da neurodiversidade reforça esse compromisso: reconhecer perfis sensoriais e cognitivos singulares e construir acessibilidade relacional e comunicativa. Assim, deslocamos o foco do “corrigir” para o “pertencer”, critério mais fecundo de desenvolvimento humano (Kapp, 2020).
Que mensagem você gostaria de deixar para pais, educadores e profissionais que acompanham crianças autistas no seu processo de desenvolvimento?
O progresso no TEA costuma ser granular, mas cumulativo. Quando oferecemos presença estável, previsibilidade e brincadeiras compartilhadas, sensações tornam-se significados, gestos tornam-se palavras e interesses tornam-se pontes. É na tessitura desse cotidiano afinado que a linguagem se inaugura e a subjetividade ganha voz (Winnicott, 1971; Alvarez, 1992).
A clínica com crianças autistas pede ritmo, humildade e rigor: ritmo para acompanhar, humildade para aprender com o brincar que elas nos propõem, rigor para sustentar um enquadre ético e tecnicamente consistente. O resultado, embora lento, é profundamente transformador para a criança, sua família e sua comunidade.
Livro Publicado
-
Análise e Interpretação dos Desenhos – Utilização dos testes projetivos nas clínicas psicanalítica e psicopedagógico (Capa comum/Kindle) https://amzn.to/4ePgxBW
Referências
Alvarez, A. (1992). Live Company: PsychoanalyticPsychotherapywithAutistic, Borderline, DeprivedandAbusedChildren. Routledge.
Ayres, A. J. (1972). SensoryIntegrationand Learning Disorders. WPS.
Bion, W. R. (1962). Learning from Experience. Heinemann.
Bondy, A., &Frost, L. (1994). The Picture Exchange Communication System (PECS). Focus onAutisticBehavior, 9(3), 1–19.
Bruner, J. (1983). Child’s Talk: Learning to Use Language. Oxford University Press.
Dunn, W. (1999). The Sensory Profile. Psychological Corporation.
Greenspan, S. I., &Wieder, S. (1997). Developmentalpatternsandoutcomes in childrenwith ASD. JournalofDevelopmental& Learning Disorders, 1, 87–141.
Hobson, R. P. (1993). AutismandtheDevelopmentof Mind. Lawrence Erlbaum.
Kapp, S. K. (2020). Autistic Community andtheNeurodiversity Movement. Palgrave.
Kana, R. K., et al. (2015). Brain networks in autism. NeuroImage: Clinical, 7, 159–172.
Klein, M. (1932/1997). A Psicanálise de Crianças. Imago/Zahar.
Lawson, R. P., Rees, G., &Friston, K. J. (2014). Anaberrantprecisionaccountofautism. Frontiers in HumanNeuroscience, 8, 302.
Meltzer, D., et al. (1975). Explorations in Autism. Karnac.
Pellicano, E., & Burr, D. (2012). When the world becomes ‘too real’: predictivecodingand ASD. Trends in CognitiveSciences, 16(10), 504–510.
Schaaf, R. C., et al. (2014). An RCT of OT usingsensoryintegration. American JournalofOccupationalTherapy, 68, 562–571.
Trevarthen, C., & Aitken, K. (2001). Infantintersubjectivity. JournalofChildPsychologyandPsychiatry, 42(1), 3–48.
Tustin, F. (1981/1990). Autistic States in Children. Routledge.
Uddin, L. Q., et al. (2013). Salience network-based systems in autism. Biol. Psychiatry: CognitiveNeuroscienceandNeuroimaging, 3–? (revisões diversas).