ENTREVISTAS

Viviane Lione

Doutora em Biociências. Prof.ª Associada da Faculdade de Farmácia da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Bioensaios Farmacêuticos, atuando em biomodelos celulares para o estudo do autismo. É coordenadora Grupo de Estudos em Transtorno do Espectro do Autismo (GETEA-UFRJ). É Mãe do Davi, autista nível 2 de suporte e da Julia, jovem neurotípica. Autora, com Cristiane Moraes e Vera Caminha do livro “Alfabetização e TEA – Bases neurocientíficas para nortear a aprendizagem de alunos com Transtorno do Espectro Autista”, publicado pela Wak Editora.

O que a ciência tem descoberto sobre o autismo? Entendendo o papel dos biomodelos celulares e a vivência como mãe-pesquisadora

Nesta entrevista, a Dra. Viviane Lione, mãe e cientista, revela como os biomodelos celulares estão ajudando a ciência a entender o autismo em nível molecular e aponta caminhos para tratamentos personalizados, sempre unindo pesquisa, inclusão e vivência real.

Dra. Viviane, você é mãe do Davi, que está no nível 2 de suporte, e também cientista. Como essa vivência pessoal influenciou sua decisão de estudar o autismo dentro da universidade?

Quando o Davi foi diagnosticado, eu já estava na Universidade, mas o autismo ainda não era minha linha de pesquisa. A vivência como mãe me mostrou como ainda há muitas lacunas no conhecimento científico e na prática clínica. Percebi que, se eu quisesse respostas mais profundas sobre o que acontecia no organismo do meu filho e como ajudá-lo de forma mais assertiva, precisaria mergulhar nessa pesquisa. A ciência não era só uma profissão, mas uma ferramenta para entender e melhorar a vida dele.

Qual foi o ponto de virada que te motivou a criar o GETEA e levar o autismo como linha de pesquisa científica?

O momento decisivo foi após organizar o primeiro Simpósio sobre Autismo da UFF, em 2017. Havia 4 meses do Diagnóstico do Davi e percebi que muitas famílias e profissionais, assim como eu, estavam buscando informações em um mar de incertezas. Ali decidi que eu poderia contribuir estudando e pesquisando. Havia pouca pesquisa translacional—aquela que leva o conhecimento do laboratório para a vida real. O GETEA nasceu da necessidade de unir ciência com um olhar humano, trazendo pesquisas que pudessem, de fato, impactar a vida das pessoas autistas e suas famílias.

Para quem não é da área científica: o que são biomodelos celulares e qual a sua importância?

De uma forma bem simples Biomodelos celulares é o cultivo de células em laboratório. Assim como cultivamos plantas em nossas casas, com determinados equipamentos e pessoas especializadas é possível cultivarmos as células. Os biomodelos são importantes porque através deles, podemos entender como determinado fenômeno biológico acontece; por exemplo, quais são os mecanismos moleculares que levam a pressão alta, ou mesmo a diabetes. Hoje, me interesso em entender os mecanismos moleculares do autismo, e os biomodelos são superimportantes para esse objetivo.

Como os biomodelos celulares podem ajudar a entender o autismo?

Os biomodelos para o estudo do autismo são formados por células que geralmente são derivadas de pacientes ou reprogramadas em laboratório e que nos permitem estudar como o autismo se manifesta em nível molecular. Por exemplo, podemos transformar células da pele em neurônios e observar como eles se comunicam, como respondem a medicamentos ou quais alterações genéticas estão presentes. É como ter pequenas regiões do cérebro em laboratório para entender melhor o que acontece em pessoas autistas.

Esses modelos permitem entender melhor o que acontece no organismo de uma pessoa autista? Como isso pode contribuir para novos tratamentos ou abordagens?

Sim! Eles nos ajudam a identificar diferenças no metabolismo, na comunicação entre os neurônios e as outras células que formam o nosso cérebro, bem como na forma como o cérebro organiza o funcionamento do corpo e até nas respostas a fármacos. Isso é crucial porque o autismo é muito heterogêneo — o que funciona para um, pode não funcionar para outro. Com esses modelos, podemos testar terapias de forma personalizada e entender quais vias biológicas estão mais alteradas em cada indivíduo.

Já existem descobertas concretas a partir dos estudos feitos no laboratório de Bioensaios Farmacêuticos da UFRJ?

Estamos no caminho. Estudar o cérebro requer pesquisadores dedicados e financiamento. Estamos estudando, por exemplo, como a microbiota do nosso intestino gera alterações gastrointestinais que são muito comuns no autismo, buscando as alterações em vias específicas e que levam à inflamação em alguns casos de autismo. Isso abre portas para repensarmos tratamentos já existentes ou testar novas abordagens, como moduladores metabólicos. Mas é importante ressaltar: ainda estamos no começo e cada descoberta precisa ser validada antes de virar tratamento.

A partir dessas pesquisas, é possível pensar em medicamentos personalizados para autistas no futuro?

Totalmente! A ideia é que, no futuro, possamos ter um perfil biológico mais detalhado de cada pessoa e, assim, escolher intervenções mais precisas—seja um medicamento, uma dieta ou uma terapia comportamental. A farmacogenômica (estudo de como os genes influenciam a resposta a medicamentos) já mostra que alguns autistas respondem melhor a certos fármacos do que outros. Eu me interesso por exemplo, por nutrição e fatores ambientais como moduladores epigenéticos (como metilação do DNA e alterações de histonas) que podem desempenhar um papel crucial na regulação dos genes associados ao autismo, oferecendo novas perspectivas para intervenções.

Como a farmacologia pode ajudar não só nos sintomas, mas na melhoria da qualidade de vida das pessoas com TEA?

Muitos medicamentos hoje são usados para sintomas associados ao autismo, como ansiedade, agressividade ou distúrbios do sono. Mas o futuro através das pesquisas,  está em foco tratamentos que modulam mecanismos centrais do autismo, como a conectividade cerebral. O objetivo é desenvolver intervenções que ajudem a pessoa com autismo a ter menos sofrimento e mais autonomia.

Existem cuidados que as famílias devem ter ao buscar tratamentos farmacológicos para autistas, principalmente com o avanço de opções alternativas e promessas milagrosas?

Muitos! Infelizmente, há falsas promessas, como “curas” com suplementos não testados ou terapias invasivas sem comprovação. O conselho é: sempre buscar um médico e profissionais especializados, questionar a base científica do tratamento e desconfiar de soluções rápidas. O autismo é complexo, e qualquer intervenção deve ser feita com segurança e acompanhamento.

Você também atua como professora em programas voltados à diversidade e inclusão. Qual é a importância de levar o autismo para dentro da universidade e formar profissionais com esse olhar mais humano?

A universidade é o lugar onde se formam os futuros médicos, professores, terapeutas, enfermeiros, farmacêuticos, advogados, engenheiros, arquitetos, entre outros. Se não discutirmos autismo lá, esses profissionais sairão despreparados. Precisamos formar profissionais que entenda a neurodiversidade, que saiba escutar as famílias e que trabalhe com evidências científicas, não com preconceitos.

Como surgiu o Grupo de Apoio de Mães de Autistas de Maricá, e o que ele representa para você?

Surgiu da minha própria solidão no início da jornada. Conheci outras mães que já tinha filhos com diagnósticos e outras que também se sentiam tão perdidas quanto eu e criamos um espaço de acolhimento e de escuta sem julgamento. Hoje, é uma rede de troca de experiências, informações e, principalmente, de afeto. Não somos só “mães de autistas”; somos mulheres que se fortalecem juntas e que lutam por politicas públicas para todos.

O que mais te emociona no convívio com outras mães atípicas e no apoio mútuo que vocês constroem?

A resiliência. Ver uma mãe que chegou desesperada e, com o tempo, se torna uma referência para outras… Isso não tem preço. Aprendemos que, mesmo nas dificuldades, há alegria, e que nossos filhos nos ensinam a ver o mundo de um jeito novo.

Para finalizar: qual recado você deixaria para mães, pais e cuidadores que se sentem perdidos diante do diagnóstico e buscam caminhos de cuidado e conhecimento?

Respirem! O diagnóstico assusta, mas ele é só o começo de uma jornada. Vocês não estão sozinhos. Busquem informações de fontes confiáveis, cerquem-se de pessoas que entendam sua luta e, acima de tudo, celebrem cada conquista do seu filho — por menor que pareça. A ciência está avançando, e a sociedade também. Enquanto isso, o amor e a paciência são os melhores guias.  Espero que essa conversa tenha trazido luz e esperança. Sigamos juntos nessa caminhada.

Livro Publicado

Alfabetização e TEA – Bases neurocientíficas para nortear a aprendizagem de alunos com Transtorno do Espectro Autista (Capa comum/Kindle) https://amzn.to/4jgrFJ2

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