ENTREVISTAS

Luciana Cordeiro Felipetto

Fonoaudióloga clínica e educacional. Doutoranda e Mestre em Ciências da Educação, Pós- graduada em Psicopedagogia e Transtorno do Espectro do Autismo. Escritora de artigos científicos e livros como “A descoberta do mundo das letras”, “O Girassol azul”, “Desafios da Linguagem” e “Tenho um aluno com alteração de processamento auditivo Central e agora?”.

Diagnóstico tardio do autismo em mulheres: o relato de uma jovem invisibilizada

“O diagnóstico certo pode mudar uma vida” — foi assim que uma jovem mulher, de 28 anos, resumiu sua experiência ao conversar com a fonoaudióloga Luciana Felipetto. O relato dessa paciente, que vive na região metropolitana de Belo Horizonte e trabalha com tecnologia da informação, expõe com delicadeza e dor a trajetória solitária de tantas mulheres autistas que foram ignoradas por anos.

O que te motivou a compartilhar a história dessa paciente conosco no Portal do TEA?

Esta paciente possui uma história inspiradora e que reflete a realidade de muitas outras que estão sem diagnósticos e são discriminadas e desacreditadas em seus ambientes sociais: família, trabalho, escola.

Desde o início me sensibilizei com a força de vontade dela e com a necessidade de saber por que se sentia diferente e tinha vontade de se esconder e de se isolar.

Participei da equipe multidisciplinar que a atendeu para fazer o diagnóstico e iniciamos a intervenção fonoaudiológica, pois ela tinha demandas de hipersensibilidade auditiva e processamento auditivo central alterado.

E durante todo o tempo de intervenção com ela pude ver sua transformação a partir do momento em que ela recebeu seu diagnóstico e como pode ser crucial esta aceitação por parte do paciente. Saber de sua condição favorece a intervenção e traz conforto e acolhimento aos pacientes. No caso dela foi o ponto de partida para a aceitação de sua condição e busca de estratégias que a tirassem do sofrimento em que vivia e da invisibilidade social.

Foi um caso clínico que mudou meu olhar de terapeuta e despertou em mim a vontade de disseminar informação, para amenizar as dores dos que buscam um diagnóstico assertivo.

Na sua visão como fonoaudióloga e educadora, por que ainda é tão comum o diagnóstico tardio em mulheres autistas?

Agora contamos com mais informações do que antigamente e antes as meninas não tinham tanta representatividade social como se tem hoje. Não tinham um olhar atento a elas e isso atrasou muitos diagnósticos.

Existem artigos que, inclusive, relatam que casos de autismo em mulheres são mais leves e as estatísticas mostram que existem mais homens que mulheres. Este fato também corrobora para que o diagnóstico passe despercebido e que casos mais sutis sejam confundidos como TDAH, como transtornos de ansiedade, depressão, dentre outros.

Ainda contamos com profissionais desinformados e que desconhecem os critérios definidos para se fechar o diagnóstico.

Precisamos disseminar mais informações e iniciativas como esta que vocês estão utilizando para falar sobre o TEA em mulheres e diagnósticos tardios, pois são importantes formas de orientar e levar a uma reflexão, além de evitar que mais pacientes cheguem aos consultórios subestimadas e que suas queixas sejam desconsideradas.

Pode nos contar a história da paciente?


Essa jovem procurou ajuda apenas na vida adulta, após uma série de dificuldades em manter sua rotina familiar, social e profissional. Chegou inicialmente com suspeita de TDAH, mas, após uma avaliação mais aprofundada, concluiu-se que também preenchia critérios para Transtorno do Espectro Autista (nível 1 de suporte). A confirmação veio após encaminhamento para avaliação neuropsicológica, feita por recomendação de sua terapeuta — a primeira profissional a realmente escutá-la com atenção.

A paciente relatou que, desde criança, ouvia que seus ‘pitis’ eram drama, exagero ou preguiça. Seus pais não reconheciam os sinais e nunca buscaram um olhar clínico mais sensível. Mesmo quando a escola fazia alertas, diziam apenas que ela precisava “controlar” sua ansiedade. Quando adulta, mesmo medicada, ainda enfrenta resistência da família, que julga desnecessário o uso dos remédios. Essa constante invalidação gerou um ciclo de frustração, ansiedade e isolamento.

Formada em TI, ela hoje pensa em escrever um livro para contar sua história e apoiar outras mulheres. Descreve-se como introspectiva, hipersensível a estímulos sonoros e visuais, seletiva na alimentação e com dificuldades para finalizar tarefas. Ambientes barulhentos ou com muitas pessoas a desregulam emocionalmente e, por vezes, desencadeiam crises de ansiedade.

Receber o diagnóstico aos 24 anos foi um alívio — ela finalmente pôde mostrar à família que não estava ‘inventando sintomas’. E mais do que isso: pôde se entender. Passou a respeitar seus limites, sua necessidade por rotina, sua preferência por estar em casa e a compreender que seu cérebro funciona de forma diferente — o que não é um defeito, mas uma característica da sua neurodivergência.

Apesar disso, o caminho até aqui foi árduo. Ela lembra da sensação constante de inadequação, do bullying na escola e no trabalho presencial, dos julgamentos por não ser “boa o suficiente” em tarefas simples. Frases como “você é tão inteligente, por que tem dificuldade com coisas tão básicas?” ainda ecoam. Hoje, trabalhar em home office é um respiro, embora saiba que o isolamento social é um ponto a ser trabalhado.

Para outras mulheres que desconfiam estar no espectro, ela deixa um conselho firme: busquem ajuda especializada e aceitem quem vocês são. Não deixem o sofrimento seguir sem nome. O diagnóstico pode não resolver tudo, mas é o começo de uma nova forma de viver.

E para os profissionais de saúde, seu pedido é direto: olhem além dos estereótipos, escutem com empatia e não ignorem sintomas apenas porque parecem ‘sutis’. A dor da invisibilidade pode ser devastadora — e o acolhimento, transformador.

Como você percebe o impacto de um diagnóstico assertivo na vida de mulheres que foram invisibilizadas por tanto tempo?

Percebo como algo impactante, como o antes e depois de uma transformação de vida e de trajetória. Algo realmente transformador e libertador. Atenua dores enraizadas a tempos no corpo e na alma dessas mulheres.

Já sofremos simplesmente pelo fato de sermos mulheres em uma sociedade machista como a nossa. Muitas mulheres já passaram pelo que esta paciente passou. Negligência da família, bullying, descrença…  Acho que com o diagnóstico precoce isto teria sido minimizado, uma vez que as pessoas dariam mais validação às suas queixas sensoriais e emocionais e o tratamento poderia também ter sido mais assertivo e dado a ela condições de receber estratégias que fariam toda a diferença diante de cada percalço que passou.

Que mensagem você deixaria para outros profissionais que ainda não estão atentos às manifestações sutis do autismo em mulheres?

Incluir é sempre um gesto de amor. Mas incluir tem que ser um movimento natural. Natural em ações, empatia, resiliência e muito amor ao próximo, uma vez que o estereótipo de “Normal” precisa ser ressignificado. A sociedade tem que entender que todos somos diferentes em nossa bela singularidade, formada primeiramente pelo amor e em seguida pelas interferências biopsicossociais.

Não existe ninguém igual. O meio ambiente, as relações sociais e os estímulos que recebemos serão cruciais para que você se torne alguém único.

Busquem informações, fiquem atentos aos critérios diagnósticos e as sutilezas de um diagnóstico. Isto impacta na vida dos pacientes e de suas famílias.

Que sejam atentos e capacitados para sempre fazer o melhor pelos pacientes e que tenham um olhar empático e acolhedor.

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