Apraxia e dispraxia são condições que afetam o planejamento e a execução de movimentos e podem estar presentes como comorbidades no autismo. Embora semelhantes, elas têm causas e manifestações distintas. Entenda suas diferenças, características e como essas disfunções motoras impactam o desenvolvimento e a autonomia de pessoas autistas.
As dificuldades motoras são frequentemente observadas em pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas nem sempre são compreendidas ou identificadas como comorbidades específicas. Entre os termos mais comuns relacionados a essas dificuldades estão apraxia e dispraxia. Embora usados de forma intercambiável em alguns contextos, esses dois termos têm significados distintos, com implicações diferentes para o diagnóstico, a intervenção e o desenvolvimento funcional.
Este post traz um panorama claro e baseado em evidências sobre o que são apraxia e dispraxia, como elas se manifestam no contexto do autismo e por que é importante diferenciá-las. Vamos explorar os conceitos, suas características principais e as consequências para a vida diária de crianças e adultos autistas.
O que é disfunção motora?
Disfunção motora é um termo amplo usado para descrever alterações na coordenação, no equilíbrio, na força muscular ou no controle dos movimentos. No contexto do autismo, essas dificuldades são cada vez mais reconhecidas como parte do quadro clínico de muitas pessoas com TEA, especialmente em níveis 2 e 3 de suporte, embora também possam estar presentes em autistas com perfil de alta funcionalidade.
Estudos indicam que até 80% das crianças autistas apresentam algum grau de dificuldade motora, que pode se manifestar na coordenação geral, motricidade fina, planejamento motor e integração sensorial.
Apraxia: quando o cérebro sabe o que quer fazer, mas o corpo não responde
A apraxia é um distúrbio neurológico que afeta a capacidade de planejar e executar movimentos voluntários, mesmo quando não há paralisia muscular ou falta de compreensão. A pessoa sabe o que quer fazer, mas tem dificuldade em organizar os movimentos necessários para isso.
Tipos comuns de apraxia:
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Apraxia da fala (Apraxia verbal infantil): A criança entende o que deseja dizer, mas tem dificuldade em coordenar os músculos da fala.
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Apraxia motora: Dificuldade em realizar gestos voluntários ou sequências de ações motoras, como se vestir, escovar os dentes ou escrever.
A apraxia está ligada a falhas na conexão entre a intenção motora e a execução do movimento, muitas vezes por lesões em áreas específicas do cérebro (como o córtex parietal ou frontal).
No autismo, a apraxia da fala infantil é uma das formas mais estudadas, por seu impacto significativo na comunicação. Crianças com autismo e apraxia verbal podem apresentar atraso na fala expressiva, dificuldade em imitar sons e palavras, e alterações no ritmo e na prosódia da fala.
Dispraxia: um transtorno do desenvolvimento da coordenação
Já a dispraxia (também chamada de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação – TDC) é uma condição de origem neurológica que afeta o desenvolvimento motor e a coordenação dos movimentos, especialmente quando são necessários movimentos sequenciais e organizados.
Diferente da apraxia, que pode ser adquirida após uma lesão neurológica, a dispraxia é um transtorno do neurodesenvolvimento. Ela geralmente se manifesta desde os primeiros anos de vida, com sinais como:
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Dificuldade para andar de bicicleta, pular ou correr;
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Má coordenação entre olhos e mãos;
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Problemas para vestir-se sozinho;
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Escrita com traços desorganizados e lentos;
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Quedas frequentes;
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Aparente “desajeitamento” constante.
Crianças com dispraxia muitas vezes têm inteligência dentro da média, mas enfrentam barreiras significativas para executar atividades que exijam planejamento motor fino ou grosso.
Apraxia x Dispraxia: Quais as diferenças?
Apesar das semelhanças — ambas envolvem dificuldades motoras e podem afetar a autonomia — há diferenças cruciais:
Característica |
Apraxia |
Dispraxia |
---|---|---|
Causa |
Neurológica (pode ser adquirida ou congênita) |
Neurodesenvolvimento (desde o nascimento) |
Planejamento motor |
Deficitário, mesmo com força e coordenação normais |
Afetado, com dificuldades em aprender e organizar sequências motoras |
Foco principal |
Execução de movimentos voluntários já conhecidos |
Desenvolvimento e aquisição de novas habilidades motoras |
Fala |
Frequentemente comprometida (apraxia verbal) |
Pode haver dificuldades, mas não é uma característica central |
Coordenação global |
Pode ser preservada, mas há dificuldade no comando |
Frequentemente prejudicada |
Diagnóstico diferencial |
Necessário descartar paralisia, déficit cognitivo ou sensorial |
Pode coexistir com outros transtornos do neurodesenvolvimento |
Disfunções motoras no autismo: qual a relação?
Pessoas autistas podem apresentar tanto apraxia quanto dispraxia como comorbidades. Essas condições não fazem parte dos critérios diagnósticos do TEA, mas estão frequentemente presentes e impactam diretamente o desenvolvimento funcional, principalmente em áreas como:
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Fala e comunicação;
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Escrita e coordenação motora fina;
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Independência nas atividades diárias (vestir-se, comer sozinho, escovar os dentes);
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Participação em atividades escolares e recreativas.
Em muitos casos, essas dificuldades motoras são erroneamente atribuídas ao “desinteresse”, “preguiça” ou “atraso cognitivo”, quando na verdade decorrem de disfunções neuromotoras que podem e devem ser apoiadas com intervenções específicas.
Diagnóstico e intervenção
O diagnóstico de apraxia ou dispraxia deve ser feito por uma equipe multidisciplinar — geralmente composta por neurologista infantil, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo e psicomotricista — e baseado em avaliação clínica e funcional.
Intervenções recomendadas:
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Fonoaudiologia: No caso de apraxia da fala;
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Terapia Ocupacional: Para melhorar a coordenação, motricidade fina e habilidades da vida diária;
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Psicomotricidade e fisioterapia: Para trabalhar equilíbrio, tônus, lateralidade e consciência corporal;
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Suporte escolar com adaptações e acolhimento das dificuldades motoras.
Quanto mais precoce o reconhecimento e a intervenção, maiores as chances de ganho funcional e autonomia.
Conclusão
Entender a diferença entre apraxia e dispraxia é essencial para garantir que as dificuldades motoras de pessoas autistas sejam corretamente interpretadas e tratadas. Ambas as condições podem impactar profundamente a comunicação, a autonomia e a autoestima, mas com o suporte adequado, é possível promover avanços significativos.
A sensibilização de profissionais, educadores e famílias sobre essas disfunções motoras é o primeiro passo para uma abordagem mais humanizada e eficaz.
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